segunda-feira, 19 de novembro de 2012

As renas do Apocalipse


As renas do Papai Noel estão tensas. Não sei que som elas fazem. Sei que os sapos coaxam, que os pássaros gralham e que as galinhas cacarejam, mas não sou de uma abnegação machadiana para com a descrição da linguagem dos animais. Então vamos considerar simplesmente que elas relincham. Estão doidas as bichinhas e se negam a ganhar os ares. O caso é que espalhou-se o boato de que o mundo vai acabar no dia 21 de dezembro de 2012. Estaria cancelado oficialmente o Natal.
Mas de onde veio essa boataria toda? Os maias, que se fossem espertos de verdade existiriam até hoje, se escafederam da face da terra – ou foram ‘escafedidos’, melhor dizendo – mas antes, por vingança tola talvez, deixaram seus diários fatalistas com suas previsões de fim do mundo.
As pistas dos antigos moradores da América Central seriam o aquecimento global, as tragédias cada vez mais frequentes, este fogo no pé da cabra que virou o mundo.
Dava até pra dar uma dose de crédito, considerando que este povo nos fez o grande favor de inventar o chocolate, mas com base em que raio da silibrina alguém põe um pin num calendário para séculos mais tarde, desconsiderando totalmente o que ainda sequer aconteceu e baseando-se unicamente no modelo atual de vida?
Explico melhor: quando se diz que a Amazônia acabará em 20 anos e ponto final, não se considera qualquer decisão eventual no presente desconhecida que venha a frear ou mesmo evitar tal hipótese. Servem, notadamente, apenas, para um alerta, para que repensemos nosso modo de vida e pensemos no futuro como algo a se viver de maneira mais responsável.
Por estas bandas, não há o que se preocupar. Primeiro porque a própria NASA fez questão de garantir que o mundo não vai acabar em 2012. A Agência Espacial Norte-americana divulgou um artigo científico, assinado por Francis Reddy, do Centro de Pesquisas Espaciais de Goddard, negando as teorias de que uma Supernova poderia pôr fim à vida no planeta. Segundo Reddy, dada a incrível quantidade de energia liberada na explosão de uma Supernova, mais até do que o Sol criou durante toda a sua existência, é um erro afirmar que esse tipo de explosão poderia acontecer em 2012. Porém, ele frisa que o espaço é muito grande e há inúmeras áreas que ainda não foram exploradas, de forma que a hipótese não pode ser descartada por completo, mas apenas para fins estatísticos, já que é bastante improvável.
Não dá nem pra bater um medinho, porque quando cientista diz “bastante improvável” ele quer dizer 0,000000001% de chance, a coisa que na prática não vai acontecer, mas ele tem que dizer alguma coisa, até pra soar menos ridículo.
Nem precisava incomodar a NASA, né? Eles têm coisa muito mais importante pra fazer, como comer poeira em Marte e achar uma molécula de hidrogênio em Plutão e chamar de vida, enquanto por aqui defendem o aborto porque uma simples célula ainda não é vida. Vai entender.
Ainda que esta verve medieval tivesse fundamento, por Catanduva continuaria a mesma coisa. As previsões para este Natal são muito boas, ainda mais com a Campanha “Feitiço de Natal” fervilhando por aí, alimentando os desejos de muita gente desejosa por ganhar um dos grandes prêmios que serão sorteados. O sorteio, sim, tem data marcada. Agora o Apocalipse? Ah, gente, vamos combinar que Apocalipse com data marcada não é Apocalipse, né? É Páscoa sem ovo.
Fim de mundo que se preze tem que ter improviso, corre-corre, aperreio. Senão é alarme falso.
Talvez no inconsciente coletivo das pessoas exista um masoquista desejo de ver tudo pegando fogo, assim como numa espécie de expiação dos pecados, uma forma de torrar o que nos consome já há muito tempo e de começar de novo.
Neste aspecto, é até triste frustrar a plateia dessa falsa catástrofe anunciada, para dizer que elas precisam continuar pagando o crediário e poupando. Em suma, pensando no futuro.
E aí concluo que é ainda mais triste pensar que muita gente, mesmo desacreditando que o mundo vai acabar este ano, com data marcada e tudo, continua vivendo como se realmente o mundo fosse acabar, agindo de maneira irresponsável, só pensando no presente.
Enquanto isso, até fim de mundo é motivo para o povo entrar na brincadeira e lucrar até mesmo com tais ideias fatalistas. São festas com temas apocalípticos. Os maias iriam adorar, regados a chocolate.
E é isso. O clima de Apocalipse é só um motivo a mais para se divertir, mas com cautela. Não venda a casa para dar a volta ao mundo.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Vistam a Maja


Socorro! Laser, ultrassom, mesoterapia, cremes e pílulas anticelulite, drenagem linfática, vinagre balsâmico, equipamentos de academia de última geração, bisturis, botox, pedras e mantras... Inventem uma máquina do tempo também. Quero voltar para a Renascença!
Quantos defeitos nossos internautas vorazes veriam no nu de Afrodite, nascendo toda serelepe das brumas do oceano. Deprimida em sua barriguinha de verme, se entocaria para sempre na ostra da qual saiu ou se afogaria de uma vez nas águas do Egeo.
E a Monalisa, com sua cara redonda demais para as semanas de moda, receberia toneladas de maquiagem corretiva. Depois a confinariam num calabouço sem comida por pelo menos sete dias, a ver se aquele duplo queixo sumia de vez. Problema maior seriam as saboneteiras. Onde estão as saboneteiras de Monalisa? Silicone, sim, mas aquele colo fofo de matrona jamais se enquadraria no padrão de beleza atual.
Acho que não preciso citar Botero aqui. Prosssigamos. O que eram aqueles culotes da Vênis de Alexandre Cabanel? E olha que ele teve séculos para apurar sua estética, já que entre a sua Vênus e a Monalisa de Da Vinci passaram-se séculos.
E que dizer da Bathseba de Rembrandt? Bela aos olhos do pintor holandês e talvez até para o próprio Rei Davi, mas hoje o que diriam os críticos de plantão? Na certa receitariam 500 abdominais diárias.
Em períodos mais surrealistas, Salvador Dali expôs as costas flácidas e os peitos pequenos de sua Gala, com a veneração digna dos apaixonados.
Mas voltemos à Renascença, a minha favorita era das musas deliciosamente confortáveis em seus corpos brancos e roliços, com seios como os fez a natureza, quadris largos como a maioria das mortais, coxas de parideira e ventre de quem come para viver.
E aí então, de uma vez por todas – dirão, eu sei – vistam a Maja! Não tem espelhos em casa essa desavergonhada? Com que audácia se despe esparramada numa cama, ostentando tantas carnes, tantas mais do que se pode admitir nos tamanhos da indústria convencional, tantas curvas perigosas demais para que não sejam rasgadas pelo tom repressivo dos acadêmicos da estética moderna.
Vistam Maja, já agora. Ela que se recolha ao seu lugar de bom senso, que fique no passado, com cheiro de tinta molhada e longe das vistas hedonistas de todos os que desejam transformar mulheres vivas em personagens de cartoon. Enfiem-lhe uma burca até, se for preciso, para que não tenhamos de vê-la daquela forma, com tamanho orgulho de si mesma. Para que não tenhamos que espalhar por aí que ela posou deitada para esticar a banha.
Não há pecado maior no século 21 do que não ter a aparência dos que podem pagar pelos caríssimos procedimentos estéticos. Não há prevaricação mais grave do que não ser perfeita esteticamente e não ter o poder nas mãos. O resto, o interior, fica para a nossa imaginação ou para a criatividade de infames tablóides.
Afinal, de que interessa ser bom e ser fotografado em projetos para a salvação da humanidade, se não for para fazê-lo ostentando um modelito original?
Os pintores e escultores pintaram e esculpiram a tez e o vigor de veias, músculos e carnes humanos porque não podiam retratar suas almas, mas buscaram retratar sua forma de vida livre e o mais profundo que chegaram deu em sorrisos enigmáticos e olhares profundos, as janelas da alma.
Quanto ao corpo, já que a Maja não serve para ser consumida nas páginas da Playboy, hoje certamente a vestiriam e, de lambuja, lhe comprariam uma esteira. Se faltasse verba e sobrasse preguiça, um photoshop serviria.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

As crianças e o Reino dos Céus



“Aquele que não se fizer como uma criança não herdará o Reino dos Céus”. As palavras de Jesus ecoam em minha mente, como num som de trovão com direito a efeitos de iluminação entre abertura de nuvens.
Olho para a TV e o que vejo? O desenho do Pokemón. Ao meu lado, e disputando seu lugar no sofá como uma visita inconveniente, mais sete adultos. Notadamente aborrecidos, tentam iniciar um diálogo qualquer. A crise mundial, o mensalão, o assassinato da juíza, o final da novela, o clima. Logo desistem, porque ninguém se escuta. Ao centro, jogado no tapete da sala como um sultão de bermudas, o menino de apenas seis anos faz do controle remoto o seu cetro.
- Fala mais baixo todo mundo aê! Eu tô assistindo! Humph! – e infla as bochechas como um trompetista pronto a soprar a nota final – Que saco, viu!
Suspiro. Será que devo ser aquilo para herdar o Reino dos Céus? Deixe ver... A partir de amanhã não respeito fila nenhuma, sento no assento de deficiente e levo meus amigos vegetarianos pra almoçarem numa churrascaria.
Peço desculpas aos parentes. Digo que estou ocupadíssima, cheia de trabalho pra entregar e que não posso ficar mais e...  Não sou ouvida. O menino sai em disparada e tira o pai do notebook.
- Papai precisa mandar um e-mail. É importante.
- Saiiiiiiiiiiiiiiiii. Quero jogar meu joguinho, depois você usa.
O pai dá um sorriso amarelo, já visivelmente destronado e faz o gênero “gerei um mini gênio”.
- Essas crianças de hoje em dia são muito espertas. Ele sabe até a minha senha! Entende tudo de computador... às vezes até me ajuda! Por isso tem que incentivar, né. Estou em falta. Era pra ter já comprado seu notebook, mas me enrolei com as prestações do celular de R$ 600 que ele pediu.
- Olha só... – faço cara de espanto, como se o filho deles fosse o único a saber ligar um computador e me lembro de que eu nunca fui promovida a Einstein mesmo tocando Mozart, Chopin e Beethoven com 10 anos de idade. Naquele tempo a gente era apenas... alguém que estuda e como consequência aprende. Normalíssimo. “E se não aprender, se não virar nada, te tiro do curso, que é caro, por isso decida se é isso mesmo que você quer”.
Chegava o dia do recital. Palmas e parabéns, mas também considerações: “na primeira música, você tropeçou, precisa estudar mais. A segunda você tocou muito bem”. Enfim, naquele tempo dava pra acreditar em elogio. Nossos pais não ficavam se acotovelando e pisando no pé dos outros pra filmar o filho interpretar o dificílimo personagem “Sol”, no premiadíssimo espetáculo “Primavera”, que consiste em um no meio do palco com uma cartolina amarela em volta da cara, mais cinco em volta com uma cartolina em forma de flor em volta da cara. E todas as crianças no palco com cara de terror olhando o desespero dos pais atravessando a frente de quem fosse em busca do melhor ângulo. Porque “tem que estimular a auto-estima das crianças”. Quase ninguém se preocupa com as distorções de realidade e as frustrações futuras do seu ‘reizinho’, quando ele perceber que o namorado, o chefe, o guarda de trânsito ou a polícia não são o pai e a mãe dele e não acham “lindo” tudo que ele faz.
Nossos pais também não iam brigar com a professora porque o personagem principal não foi do filho deles. Se a gente reclamasse, corria o risco de ouvir: “A professora é que sabe. Estude mais e mostre mais empenho. Quem sabe da próxima vez você é o escolhido”. E crescíamos sem traumas. Sem crise.
Voltando ao átrio do mini Faraó. Quero ir embora. Voltar ao mundo dos adultos. Os pais do pequeno príncipe sem raposa pra puxar pelo rabo insistem pra eu ficar mais um pouquinho, perguntam que tanto trabalho é esse, o que eu ando fazendo, além de não colaborar para agravar o inchaço populacional do Planeta Terra.
- Então... quando teremos um amiguinho pro Rafinha brincar?
- É... tentador, mas no mundo de hoje...
Mal abri minha boca pra responder, de súbito meus interlocutores parecem mais interessados no hemisfério sul. Explico: somos interrompidos por um puxão na barra da blusa, que vem lá de baixo, do nosso fofo pigmeu.
- Mãe, quero comer biscoito!
- Mas filho, você vai jantar daqui a pouco. O biscoito vai estragar sua janta.
- EU QUERO BISCOITO, EU QUERO BISCOITO, EU QUERO BISCOITO!
Lá fico eu de novo com cara de tacho, feito uma coluna do templo, esperando o desfecho dessa emergência inadiável, reivindicação importantíssima para a humanidade: a aprovação do projeto do biscoito. Um dos temas da próxima conferência do G20. “Mudanças nas relações comerciais com os países em desenvolvimento e... os biscoitos do Rafinha”.
- Pera só um pouquinho... – diz a mãe – para mim, que fique claro – enquanto vai até a cozinha, fingindo que manda alguma coisa – Só dois, hein?
O menino arranca o pacote de biscoitos da mão da mãe, como se não comesse há 40 dias e 40 noites no deserto de Gobi. Não fosse as bochechas coradas, alguém poderia chamar o Conselho Tutelar.
Finalmente, em meio às divergências de posse do biscoito, obtenho lapso de atenção suficiente para me despedir apropriadamente e tomo o rumo de casa. A primeira impressão que tenho ao cruzar o portão é o silêncio, apesar do ônibus que passa buzinando, do carro com som no último tocando funk, da madeireira em frente e da broca da Prefeitura quebrando o asfalto. Não ouço mais a voz ardida do pequeno ditador, nem a trilha sonora dos Cavaleiros do Zodíaco. A paz reina.
No caminho de volta para casa, algumas frases dos meus pais dos meus tempos de criança me vêm à mente:
- Já são nove horas. Todo mundo pra cama.
- No Natal ou no Dia das Crianças eu te dou, mas vamos ver nossas condições... – e nada de presente a cada vez que se vai ao supermercado.
- Quando chegar à casa do fulano, comporte-se e não mexa em nada.
- Silêncio agora que a mamãe tá conversando.
- Não aponta pra ninguém na rua, que é feio.
- Pare de encarar as pessoas na rua, que é falta de educação.
- Oferece pro moço.
- Divide com o coleguinha, senão não te dou mais.
- Agradece o tio.
Confesso que entre minhas antigas memórias e os mais recentes acontecimentos tenho dificuldades para entender como pode ser das crianças o Reino dos Céus. Até porque nem nos anos 60 ou 70 éramos santos. Nem na corte de Versalhes, nem na varanda dos amish menonitas, nem na tribo dos tupinambás. Nunca vi crianças como anjos. Para mim sempre foram apenas seres humanos em miniatura. Como anões, só que com a cabeça menor.
Quando lecionava, cheguei a ver crianças que colocavam o pé na frente do coleguinha só pelo prazer de vê-lo se esborrachar. Ao serem confrontados, mantinham a feição cândida dos anjinhos barrocos, mesmo com todos os dedinhos das demais crianças da classe apontando pra eles enquanto repetiam em coro: “Foi ele, sim, tia, foi! Todo mundo viu! A gente não aguenta mais! Ele bate em todo mundo!”. Praticamente a população de um país do Oriente Médio ou Norte da África clamando Justiça à comunidade internacional. “Tirem esse déspota daqui!”.
Havia também crianças de cinco anos que socavam a cabeça dos mais indefesos contra a parede. Crianças saudáveis, de famílias distintas, bem amadas e frequentadoras das mais renomadas instituições educacionais. Outras, como potros selvagens, mordiam crianças, progenitores e diretores. Em suma, tudo que se movesse. Outros, mais incautos, e menos dados à selvageria, apenas se alegravam soberbamente com a punição do semelhante. Punição esta por vezes acelerada pela denúncia escancarada: “Foi ele, eu vi! Manda pra fora! Conta tudo pra mãe dele! Não deixa ir ao parque! Dá zero pra ele! Crucifica! Crucifica! Crucifica!”. Oh, Jesus, que será do teu Reino?
Hitler já foi criança. Bin Laden não nasceu com aquela barba. Assassinos, traficantes, ladrões, mentirosos contumazes... todos já foram crianças. E mesmo os que hoje assinam seus cheques como cidadãos respeitáveis e até os que se destacam na cidade como pilares da moral e dos bons costumes ou como exemplos de vida no voluntariado, quando crianças, atormentavam a vida de coleguinhas mais feios, mais gordos, mais magros, mais bobos. Como pode ser das crianças o Reino dos Céus?
Crianças não são anjos, nem demônios. São mais puras e inocentes porque não viveram o suficiente para fazerem suas escolhas. Crianças são uma tela em branco, testando a tudo e a todos, perguntando tudo pra todo mundo e se achando o centro do universo. Devemos então ser egocêntricos para herdar o Reino dos Céus?
Já começava a me incomodar com a minha confusão, mas de repente, como uma peteca na cabeça, me vem a resposta. Dependência! Crianças são totalmente dependentes. Acreditam nos pais e deles esperam tudo. Simbolizam a fé que Deus espera de nós e não a auto-suficiência. Dependência como a de uma criança, que caminha tranquila de mãos dadas com o pai, ainda que esteja caminhando pelo corredor da morte, porque ao lado de seu ‘herói’ nada mal pode lhe acontecer. Quem assistiu ao filme “A vida é bela” sabe bem o que isso significa.
As crianças dependem dos mais velhos para receber tudo de que necessitam para se tornarem adultos responsáveis. Carinho, amor, alimentação, educação. Não só a que se aprende na escola. Elas dependem de nós para que não se transformem em pequenos tiranos. Para que não sejam, no futuro, imperadores de um reino em ruínas. Para que sejam, mesmo adultos, as crianças que Jesus espera que sejamos. Humildes dependentes do Altíssimo. Inquilinos eternos do Reino dos Céus.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

50 anos sem Marilyn e a crise do cinema

Marilyn Monroe, a Cleópatra moderna, o mito mais poderoso do século 20. Meio século após sua morte - morreu num dia 4 de agosto de 1962 – Marilyn continua sendo considerada uma das atrizes mais sensuais que já existiu. Indisciplinada e complicada, tida como irresponsável e incapaz de ser pontual. “Ela chega atrasada, sim, mas eu tenho uma tia que sempre chega na hora, mas ninguém gostaria de vê-la numa tela", defendeu-a Billy Wilder, que a dirigiu em “Quanto mais quente melhor”.
A falsa loira, que dizia que era preciso a esperteza de uma morena pra ser uma loira fatal, conquistou a maioria das vezes os papéis de loira burra e sua fama de sex symbol ofuscou tudo que realmente era: uma mulher que sabia potencializar seus atributos como ninguém, com segredos de maquiagem e de estilo de se vestir até hoje copiados, e que desejava ser muito mais. Estudava, tinha aulas de canto, dança e teatro. Queria se superar e conseguia.
Dona de uma voz inconfundível, interpretava dentro e fora das telas. Isso a transformou num personagem em tempo integral e a prova de que, sem dúvida, era uma grande atriz, pois a personagem não era a Lorelei de “Os homens preferem as loiras” ou a Pegg de “Só a mulher peca”. O grande personagem de Marilyn sempre foi a ela mesma. Um talento inato. “Dirigir Marilyn Monroe é como dirigir Lassie”, disseram. A atriz colocada no panteão das deusas era ao mesmo tempo ridicularizada e subestimada. Por trás de seus corsets apertados, litros de tinta de cabelo e maquiagem, numa manhã decaída, quando detestava ser surpreendida, ficaria evidente que não era tão bonita assim. Mas ela acreditava que toda mulher deveria ser chamada de linda, desde a infância, ainda que não fosse. Por outro lado, sua insegurança vinha do fato de que apesar do talento que demonstrava, parecia nunca atingir o respeito e prestígio de suas contemporâneas Katherine Hepburn e Betty Davis. “Não me faça parecer uma brincadeira”, suplicou ela ao repórter a quem concedeu a última entrevista antes de morrer.
Podemos dizer tanto sobre Marilyn e ao mesmo tempo tão pouco. Sabemos que nunca soube quem foi seu verdadeiro pai. Que viveu em orfanatos após a mãe ser internada num hospício. Que se casou muito jovem para não ter de voltar ao orfanato e que se divorciou pouco tempo depois porque o marido exigiu que escolhesse entre ele e a carreira. Sabe-se que gostava de crianças, mas nunca teve filhos. Sua morte é cercada por uma névoa de mistério: suicídio ou assassinato? Provavelmente nem uma coisa nem outra. Devia estar triste e exagerou na dose, misturando remédio demais com bebida, sendo insana e intensa como a Marilyn de sempre. Não parecia das mais sensatas, mas também não deu indícios tão fortes de que queria morrer. Acusar os Kennedy's de assassinato me parece mais uma tentativa desesperada de explorar o mito. Mas não vou direcionar o artigo para esta arena polêmica e tão parca de glamour. Prefiro tentar imaginar o que Marilyn queria realmente e o que era de verdade. Ela sempre dizia que não ligava a dinheiro, só queria ser maravilhosa. Mas, com 37 anos e a proximidade dos 40, talvez a solidão lhe tenha batido à porta, gerando em seu âmago crises existenciais aterradoras. O que a maior diva de todos os tempos poderia querer mais? Ser a mulher do presidente do país mais poderoso do mundo. Mas não pôde. Ser mulher, aliás, era o que lhe interessava. Dizia que não lhe importava viver num mundo de homens, desde que neste mundo lhe fosse permitido ser mulher.
Mas que mulher? O humor de Marilyn era uma gangorra. Alguns lhe rotulam de egoísta e nada profissional. Outras, em sua defesa, dizem que Marilyn era apenas uma mulher frágil. O mais correto a se dizer sobre Marilyn é seu mistério. Seria ela tão frágil quanto sugeria sua voz de miado de gata? Uma mulher assim tão vulnerável teria saído do nada e conseguido a proeza de fazer seu primeiro filme com 21 anos, tornando-se a atriz mais poderosa de Hollywood com apenas 27 anos de idade? Difícil de acreditar. Seria sua fragilidade aparente também parte de seu personagem? Será que ela sabia o tempo todo o que estava fazendo quando todo mundo pensava que ela não sabia o que fazia? Acredito que sim, mas o mistério continua. E talvez este mesmo mistério explique todo o fascínio que circunda até hoje a mulher de sombrancelhas angulosas, olhos lânguidos, lábios carnudos e corpo ampulheta, que soube misturar com dosagem magicamente perfeita a lolita e a mulher fatal. Rest in peace, Norma Jean? Ninguém pode dizer isso. Norma nunca descansou, desde que se tornou Marilyn. Como já diz a canção de Elton John: “Your candle burned out long before, the legend never did” (sua vela se apagou muito tempo atrás, mas jamais a sua lenda). Ao que parece, nem se apagará.
E por que falar em Marilyn, para além do 50º aniversário de sua morte? Porque Marilyn também é história. História do cinema. Porque dias atrás lemos nos jornais de Catanduva a triste notícia de que os cinemas Bandeirantes e República, parte da história de Catanduva, fecharão, por falta de recursos. Falta de interesse do público e das autoridades. Os cinemas são cultura e desenvolvimento para os catanduvenses; para o comércio principalmente, pois a força da cultura impulsiona os negócios. Quantos não poderiam narrar momentos em que foram ao cinema e, logo após, compraram algo numa loja ou um sorvete na sorveteria da esquina da rua Alagoas? Onde estão os nossos representantes públicos e empresários, que deveriam tentar impedir que este cinema vire parte do passado? Deixaremos também esta 'vela' se apagar? Até porque, a tirar pelo descaso geral, nem a lenda ficará. Só o vil metal salvará. Chora, Norma, chora. No fim das contas, diamonds are a girl's best friend. Não os homens, que nos abandonam, não a cultura, que é relegada. Diamantes – Marilyn cantaria – os diamantes são os melhores amigos de uma garota. Ou de um sistema inteiro.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Dia do Abraço


No dia 22 de maio comemoramos o Dia do Abraço. Cada vez fico mais boba de ver como a nossa sociedade anda mais carente que meu coelhinho fuzzy lop. Todo dia de manhã ele rodopia à minha volta, como se eu fosse literalmente o sol da vida dele, depois senta numa posição de Buda roedor, só querendo dizer uma coisa: acaricie-me. E eu obedeço. Se um alienígena fosse enviado a Terra pra espionar a raça humana e visse a situação, ia reportar a seus superiores que no Planeta Terra os coelhos got the power.
E eu abraço meu coelho e não abraço meu vizinho. Isso faz de mim a pior pessoa do mundo? Acho que não. Eu abraço também a minha mãe, o meu marido, amigos íntimos. E nunca precisei de um Dia do Abraço antes, o que me leva a pensar na razão de terem criado uma data tão idiota.
E antes que me acusem de insensível, eu explico. Abraços e beijos são coisas simples demais – ao menos deveriam ser – para serem transformadas em datas. E se assim foram é porque há algo de errado com as pessoas e inventar uma ocasião especial pra isso não vai resolver nada, não vai acabar com toda a insensibilidade do mundo cheirar o cangote de um completo estranho.
Colocar um ativista para estimular a cultura do abraço em série numa rua movimentada, com um cartaz no pescoço escrito “abraços grátis” ou aparecer no trabalho abraçando todo mundo, até aquele que está açoando o nariz, só vai produzir duas coisas: constrangimento e epidemia de gripe.
Num dia assim deve ter muita gente que se esconde no banheiro pra não levar um abraço daquele que tem fama de tarado, do outro que tem bafo, da fulana que tem cecê ou ainda daquela outra inconveniente que te abraça pra logo depois dizer: “deu uma engordadinha, né?”.
 Abraço não se força, não se impõe, não se manipula, não se sugestiona. Acontece naturalmente. E se não acontece não é o fim do mundo. Eu prefiro uma pizza.
Vão dizer por aí que o mundo está do jeito que está porque as pessoas não se abraçam. Mas eu digo que talvez elas não se abracem exatamente porque o mundo está do jeito que está e não é conveniente sair por aí abraçando todo mundo e depois por a mão no bolso e sentir falta da carteira.
Não é o roteiro do nosso teatro que tem que mudar, mas o nosso interior. O mundo precisa de mais sinceridade, honestidade, coerência, caridade, ética, paz, amor, atitude, constância. De tanta coisa! Eu acho que abraço é o que menos a gente está precisando. Principalmente quando eu penso em Brasília.
O mundo definitivamente não precisa que todo mundo se abrace gerando uma propagação em massa de vírus e bactérias, pra depois cada um voltar pra sua casa exatamente o mesmo.
Eu não abraço todo mundo que gosto e admiro. Apenas me relaciono com cada um de maneiras diferentes, como convém ser. Eu admiro o escritor Ariano Suassuna, mas, de todo o coração, não preciso abraçá-lo. Eu adoro ler as crônicas de Luís Fernando Veríssimo, mas se ele não quer me abraçar eu fico totalmente indiferente. Meu vizinho da frente é simpático, sempre me cumprimenta com um sorriso, mas não vejo a menor necessidade de trocar contato físico com ele. A recepcionista de onde eu trabalho é muito eficiente e eu reconheço isso, mas acredito que ela prefira receber um elogio numa reunião com o chefe que um abraço. Da mesma forma como eu amo de paixão um monte de gente com as quais jamais viajaria junto, pois, pacatos como são, seriam péssimos companheiros de aventuras. Do mesmo jeito como eu ajudo a quem não confio, como eu me divirto com quem não sabe dar conselhos. Pela mesma razão pela qual valorizo muitas pessoas, mas não sou nem louca de comer a comida delas – eu me amo e não confio na minha comida – ou ainda o motivo pelo qual, quando eu viajo, não deixo meu coelhinho com amigos meus que eu adoro, porque ainda que eles jurem que vão cuidar eu sei que existe uma grande possibilidade do meu orelhudo morrer de sede. Ainda outros dizem que não podem ficar com ele porque ele roeria seus móveis todos, o que é bem provável. Como devo interpretar isso? Que eles gostam mais dos móveis do que de mim? Não. Da mesma forma como o fato de eu não abraçar alguém não me torna insensível ou fechada.
E só pra finalizar: meu coelho odeia ser abraçado. Ele sai correndo. Ele gosta de receber carinho sem ser apertado. Ele gosta do que eu sou capaz de lhe proporcionar, apesar de não saber a menor ideia de quem eu sou realmente. Eu posso ser uma psicopata que pra ele não vai mudar nada. Ele vai continuar me “adorando”, jogado aos meus pés, exagerado. Porque é isso que fazem os animais.
Por isso mesmo, como seres humanos, deveríamos esperar por muito mais que um mero abraço, porque abraçar uma pessoa que mal conhecemos e sequer despertamos a curiosidade por conhecer, para depois virarmos as costas e voltarmos pra casa com a sensação de dever cumprido, não nos faz pessoas melhores. Não quer dizer absolutamente nada, se ainda continuamos a sociedade egoísta e individualista, que prefere interagir com uma iguana do que com a complexidade de outro ser, afastando-se dele ao menor sinal de desagrado ou discordância, alegando sempre incompatibilidades que no fundo não passam de agressão ao próprio narcisismo. Dia do Abraço? Sinceramente? Pro meu coelho pode estar valendo, mas continuo esperando mais dos seres humanos.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Onde nasce o preconceito?



Onde você nasceu? De que forma você nasceu? E de que forma nasce o preconceito? Para responder tais perguntas, defina primeiro a que geração você pertence. Você é Geração Coca-Cola, Geração Paz e Amor, Geração do Voluntariado ou da Geração dos Desclassificados? Se o preconceito brota de você, sua geração não merece sequer classificação. Porque o preconceito nasce do desconhecimento. Estranhamos e ‘desgostamos’ aquilo que não conhecemos. Se as pessoas fossem mais viajadas e mantivessem a mente aberta para as diferentes culturas, seriam tão mais interessantes quanto menos preconceituosas. De quebra, aprenderiam mais e contribuiriam positivamente para o crescimento do outro. Todos ganhariam com isso.
Não é de se estranhar que o preconceito encontre raízes fortes entre pessoas com nível educacional mais baixo. Mas também é possível ver gente rica e com curso superior agindo de maneira preconceituosa, porque não dá pra confundir conhecimento acadêmico com o verdadeiro conhecimento, com uma pessoa que pensa.
O preconceito é de todas as cores, credos, origens e opções sexuais. E para se distanciar ainda mais do objeto odiado, o preconceituoso se apega a estereótipos, fortalece ideias e mitos criados para enfraquecer a classe odiada. E assim germinam absurdos que ligam latinos a drogas, homossexuais à perversão, negros ao fraco desempenho intelectual e bom desempenho nos esportes, nordestinos à imagem do migrante pobre e inconveniente.
Para que este artigo não tenha 30 páginas, vamos nos apegar ao mais recente caso da estudante de Direito Mayara Petruso, punida pela Justiça pelas declarações preconceituosas contra nordestinos no Twitter.
Há muitos outros paulistas e paulistanos como ela, infelizmente. Como nordestina, sofri certo preconceito quando me mudei para Catanduva ainda criança, mas na época não se falava em bullying. Era tudo encarado como brincadeira, mas é uma brincadeira que acaba sendo divertida para quem a faz. Poucos procuram saber se a brincadeira está agradando quem é o alvo dela. No ano de 1983, houve uma severa seca no sertão nordestino – como aliás acontece de tempos em tempos e ninguém resolve – e a imagem do nordestino era vinculada à miséria, à carência e, claro, era tudo verdade, mas em vez dessa verdade suscitar maior interesse dos brasileiros de outras regiões pelos problemas que são do Brasil e não se restringem só a uma região, é mais fácil se manter ausente, como se aquilo fosse um outro país, e tratar as pessoas que vêm de lá quase como animais. Senão como animais, brasileiros inferiores, de certa forma, não como os brasileiros germânicos do sul. Cansei de ouvir declarações como: “Você é paraibana? Nossa... mas você é alta, tem boa aparência...”. Lembro que nos anos 80, alguns brasileiros sequer sabiam da existência de alguns lugares paradisíacos no Nordeste. Achavam que aquilo era só seca, que não tinha belezas. A barreira turística foi rompida, mas ainda há muita desinformação. E isso está profundamente ligado ao péssimo nível educacional do brasileiro, que desconhece seus próprios gênios, num país onde a bailarina do Latino é mais conhecida que um escritor do naipe de Ariano Suassuna.
E o escrito paraibano é apenas um entre tantos exemplos de nordestinos famosos, talentosos, inteligentes e bem sucedidos que vou elencar. Entre os músicos: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Lenine, Raul Seixas, Pepeu Gomes, Zeca Baleiro, Fagner, Djavan, Hermeto Pascoal, Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Chico Science.
Entre os escritores: Jorge Amado, Guimarães Rosa, Arthur Azevedo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José de Alencar, Nelson Rodrigues. Raquel de Queiroz.
Entre as modelos internacionais temos: Adriana Lima, Fernanda Tavares, Laís Ribeiro, Suyane Moreira, Emanuela de Paula, Bruna Tenório, Daniela Alves Rezende, Kamila Hansen, Simone Carvalho, Isabela Melo, Luciana Curtis.
Temos ainda o jornalista Assis Chateaubriand, os cineastas Cacá Diegues e Glauber Rocha, o poeta Castro Alves, o dramaturgo Dias Gomes, o sociólogo Gilberto Freyre, os atores Marco Nanini e Wagner Moura, o pedagogo Paulo Freire, o pintor Romero Brito e tantos outros.
Os nordestinos encontram-se em todas as partes do país, misturam-se a todos nós, brasileiros. Como é possível, então, que em pleno século 21, um povo tão notadamente reconhecido pela sua simpatia e miscigenação, seja preconceituoso para com quem vêm de outras paragens, em especial a região Nordeste?
Quais características de outras regiões fazem seus moradores sentirem-se tão diferentes? Curitiba, tão elevada à condição de capital europeia brasileira, têm amargado índices de criminalidade altíssimos. São Paulo, a cidade que nunca pára – graças em boa parte ao trabalho dos nordestinos – é uma cidade feia. Com partes bonitas, áreas desenvolvidas e onde se encontra de tudo. Mas, convenhamos, se compararmos com outros grandes centros do mundo, como Paris, Nova Iorque, Rio de Janeiro ou Fortaleza, São Paulo não tem grandes belezas que se destaquem em sua paisagem. E o caso aqui não é falar mal desta ou outra cidade, mas de se encarar a realidade. E talvez a mais gritante delas seja o fato de que muitos neonazistas que batem em nordestinos dobram a esquina e pedem uma tapioca com doce de leite. Porque simplesmente há milhões de paulistanos descendentes de nordestinos. Porque os paulistanos podem descender de qualquer um de qualquer parte do mundo. Porque São Paulo talvez seja a cidade mais brasileira do Brasil justamente por isso, por reunir numa só cidade pessoas com ascendências de diferentes etnias e regiões. A maioria de quem está lá veio de algum lugar e por isso toda sorte de preconceito se torna não apenas inaceitável como ridícula.
Outro ponto a se considerar é o de que, nos últimos tempos, a situação tem se invertido e muito. Não assistimos apenas a migração de nordestinos para a região Sudeste, mas também de gaúchos para a região Centro-Oeste e Nordeste, que está, por sinal, industrialmente em franca ascensão, impulsionada pelo pujante potencial turístico, e de brasileiros de todas as partes do Brasil para a região Norte, tão carente de diversos tipos de profissionais, principalmente os da área da Saúde. Vão atrás de oportunidades e colaboram para o desenvolvimento daquela região. É uma via de mão dupla.
Faço minhas as palavras da líder nordestina Francis Bezerra sobre a infeliz frase da tal estudante de Direito. Sobre esse tipo de gente, Francis diz assim: “São pessoas que não pagam aluguel, não têm compromisso com água, luz, alimentação. Não sabem o que é fome, o que é morar na rua. Então, têm tempo para isso. Recebem uma boa mesada e não têm compromisso com o País. Essa geração não é nem coca-cola, nem paz e amor. É uma geração que sequer tem classificação. Uma geração que tem pai e mãe que dão tudo. Essa geração é pobre de espírito, de cultura, de tudo. O Brasil está muito mal preparado para o futuro".
Estes mesmos brasileiros que agem como se nada dissesse respeito a eles, não gostam de ser tratados com desdém em países desenvolvidos. Então por que odiar alguém que mora no mesmo país, simplesmente porque ele não nasceu na mesma cidade ou região?
Afirmam que levas de nordestinos desestabilizaram a infra-estrutura de grandes cidades como São Paulo, mas por que odiar os nordestinos e não os governantes, por não terem colocado em ação políticas públicas suficientes para evitar esse êxodo e, consequentemente, o ‘inchaço’ populacional dessas metrópoles?
Concluímos que o Brasil está do jeito que está e é do jeito que é não apenas por culpa dos políticos, mas por culpa de toda a cultura de seu povo, fragmentado em diversos grupos sociais, cada um com uma visão não de Brasil, não do todo, não do que é melhor para todos, mas do que é melhor para o seu grupo, para sua classe social, para sua profissão, para seu grupo religioso, para os que compartilham da mesma opção sexual. Formam-se, então, clubinhos, que acabam não tendo a força que deveriam ter justamente por seu egoísmo, porque estão fragmentados e enfraquecidos pela limitação de suas aspirações em torno de interesses pessoais. E obviamente que quem leva a melhor sempre é quem pode mais.
A lei está aí e punirá a todos que forem idiotas suficientes a ponto de externarem seu preconceito bobo em redes sociais. E isso não deixa de ser um ‘cala a boca’ bem contundente.
Mas para calar de vez a boca dos preconceituosos, que saibam que preconceito nenhum nunca vai apagar esse brilho trazido para todo o Brasil e repercutido para o mundo através dos nossos brilhantes nordestinos, sejam eles famosos ou não, sejam eles artistas ou trabalhadores braçais incansáveis, que com sua força construíram cidades inteiras, em todas as regiões do País. Afinal, o sertanejo, o nordestino, como já dizia Euclides da Cunha, “é antes de tudo um forte”.

Adriana Moura (jornalista, escritora e nordestina natural de João Pessoa, Paraíba, com muito orgulho)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A falta de iniciativa é a mãe de todos os fracassos


Dificilmente se pode achar um epíteto mais apropriado que “mãe” quando o que se tem em mente é alguém que age e não fica só de trololó. Mãe, aliás, ganha esse nome exatamente porque “fez”. E é dela todo o trabalho por algo pelo qual, a partir do primeiro ano, quem vai levar os parabéns é o rebento.
Quer quantificar o quanto uma mãe é a função que mais se aproxima do ideal de iniciativa? Imagine que, ao cometer um lapso no trabalho, como perder a hora, voltar um troco errado ou escrever um texto com erro de português, uma pessoa morre. Certamente se buscaria dormir com um despertador em cada borda da cama, conferir o dinheiro trinta vezes e matricular-se imediatamente num curso intensivo de Língua Portuguesa. Pois é esse estresse que acomete as mães, as quais, à menor distração, podem colocar em risco a vida de seus bebês, seres totalmente indefesos num mundo cheio de perigos. Aquela frágil criatura depende de muitas iniciativas maternas.
As mães não têm tempo a perder com discursos vazios. Elas devem colocar a mão na massa. De suas mentes, mãos e pernas depende o alimentar diário de seus filhos, bem como a higiene, a saúde e a educação, e tudo o mais que envolva a formação de um ser humano feliz, bem preparado e de bom coração.
Seria esperar demais? Às vezes sim, pois a vida tem seus mistérios e não é perfeita. Por isso mesmo, muitas vezes, a despeito do esforço materno, não é possível privar os filhos de momentos infelizes, muito menos impedir tragédias ou que o filho tome decisões erradas, prejudicando a si mesmo ou a sociedade.
Trabalho difícil o de ser mãe. Todo trabalhador recebe, ao final de cada mês, o seu merecido salário. À mãe compete se doar por amor, muitas vezes abstendo da própria vaidade em prol do bem-estar do filho. E para ela um beijo, um abraço, uma demonstração de carinho, por mais simples que sejam, não têm preço.
Muito se fala que as mães não precisam se anular. Elas conquistaram também seu espaço como profissionais, reservando um tempo para se cuidarem e mantendo-se belas e atraentes. E tudo isso é verdade. Mas também é verdade que para uma boa mãe vem sempre em primeiro lugar a felicidade do filho. Se todas as mulheres pensassem assim, poucas decidiriam se tornar mães. Porque ser mãe não é projetar suas frustrações, querendo se realizar nas conquistas do filho. Ser mãe é compreender que se deu vida a outro ser humano, com aspirações que podem ser totalmente diferentes das dela e, ainda assim, amar incondicionalmente, um amor que não visa o retorno imediatista e sim a formação do caráter.
As mães nos ensinam muito sobre compreensão, prioridade e iniciativa, algo que anda muito em falta. Vemos hoje em dia pessoas fazendo muitas tarefas ao mesmo tempo, muitas atividades durante o dia, satisfazendo seus egos, mas, ao final de um longo período da vida, o que elas realmente “fizeram”?
A sociedade está perdida em sua montanha de compromissos, andando em direções impostas, dentro daquilo que se configurou como certo ou ideal de sucesso e reforçando destinos infelizes a quem não soube identificar sua própria fórmula de felicidade para, a partir de então, viver a vida priorizando o que é realmente importante, com coragem e iniciativa para agir quando a vida pede mudança, com mais atitude e menos confabulações.
Recentemente, na fila de uma repartição pública, duas mulheres praguejavam, ao ver que, na sala lotada, todas as cadeiras estavam ocupadas, sendo uma delas por um par de sacolas. Uma delas cochichou, com muita raiva: “Essa é boa... agora sacola também senta?”. Eu, que tinha chegado alguns segundos depois delas e ouvi a conversa, diante da inércia das reclamonas, me dirigi até o assento. Não foi preciso nem pedir. Ao me ver, o rapaz educadamente colocou as sacolas no chão e eu me sentei, agradecendo. Talvez aquelas mulheres tenham pensado: “Puxa vida! Por que eu não fiz o mesmo, em vez de ficar falando mal?”. Certamente aquele rapaz colocou as sacolas no assento quando não tinha tanta gente e depois se distraiu. Mas muitas vezes nossa maledicência apática nos cega.
O caso citado é um exemplo muito simples de um fenômeno doentio que acomete muita gente: o praguejar vazio, seguido pela falta de iniciativa. Não adianta esbravejar se você não reclama com a pessoa certa ou no setor adequado, simplesmente para manter as aparências e evitar o confronto. De nada resolve criticar e até falar palavrão, se você não tem um plano para fazer a sua indignação exercer influência na mudança de realidades, seja individualmente, seja unindo-se a grupos de pessoas que compartilham do mesmo ideal para reverter injustiças.
O brasileiro precisa entender de uma vez por todas que não estamos mais sob os anos de chumbo da ditadura, que obrigava a todos a se calarem e engolir em seco toda revolta, guardando para si todo descontentamento. Precisa também deixar de ser individualista e fatalista, achando que nada resolve, que a vida é assim mesmo, bem “Gabriela”, que se todo mundo faz não tem problema, que ser simpático é mais importante que falar a verdade, que viver num mundo de ilusões é melhor do que tentar.
Muitas vezes não queremos sair de nossa zona de conforto e evitamos ao máximo uma conversa frontal e sincera, um passo à frente, uma decisão, uma ação. E então nos esquecemos de que os bons pensamentos devem nos levar a boas iniciativas, para que estas se convertam em hábitos e, ao final, moldem destinos.
Mães entendem muito bem de iniciativas. Mães, com seus almoços e jantares, no “tchic-tchic” de suas panelas de pressão, entendem perfeitamente de hábitos, em suas rotinas estafantes. Mães também entendem muito bem de destino, pois trabalham pelo futuro, na mais desafiante das missões: criar um novo ser humano. Mães só não entendem de “acabativa”. Uma vez ‘mães’, este posto nunca acaba. Iniciativa elas sempre terão, enquanto o filho for filho ou pai de seus netos.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Mate uma pessoa e ganhe uma terapia grátis

Escusas de explicar que o artigo que se desfolha sobre os olhos do leitor teve inspiração imediata nos casos extraordinários da realidade ordinária. Doceira que tentou matar adolescentes com brigadeiro envenenado vai passar por tratamento psicológico. E a frase que me veio à mente foi como um daqueles letreiros fosforescentes de Las Vegas: “Mate uma pessoa e ganhe uma terapia grátis”.
Que me perdoem os profissionais da lei e da psicologia, a quem minhas considerações não passam de um simplismo insuportável, mas confesso que me sinto preterida pela sociedade onde vivo. Sabendo o quanto custa uma terapia pela qual todo mundo, um dia ou outro, desejou ter cacife e tempo pra fazer, me parece um tanto inusitado, para não dizer injusto, que uma pessoa tasque o tal tratamento “na faixa”, depois de uma tentativa de assassinato premeditada e por motivo fútil: a prorrogação de uma festinha de aniversário, para a qual a assassina já teria recebido o pagamento e gasto o dinheiro sem ter preparado os doces. Que me desculpem os acadêmicos a simplicidade cortante de meu diagnóstico, mas o que leva alguém a cometer tal crime com tamanha frieza é doença ou é maldade? De onde vem essa nossa ânsia de agora de rotular com nome de doença o que para mim não passa de doença moral? Se uma criança não pára em sala de aula e não obedece ninguém, ela não é sem educação. Ela é doente, é hiperativa. Se uma pessoa mata outra, também, a maioria das vezes, alega transtornos mentais. Mas ainda não inventaram transtorno mental que deixasse a pessoa obcecada em ajudar os outros. “Fulano não pode ver ninguém precisando de ajuda, que é batata: já abre a carteira”. Alguém já presenciou esse tipo de desordem mental? Se já, por favor me avise.
O egocentrismo e a ausência de sentimentos ajudam a moldar uma sociedade psicopata, onde comportamentos antes condenados são não apenas plenamente aceitáveis como até admirados e desejáveis, como sinônimos de intrepidez nos negócios, espírito de luta e de vitória, esperteza. Não tem problema passar por cima de tudo e de todos, em nome da competitividade, se o que importa é ser bem sucedido e estar no topo. É a lei de mercado, a vida é essa. Não importa se o lugar de destaque na mídia foi conquistado a troco de mentiras e apelações. “Ela é esperta, sabe lidar com as armas que tem”, dirão.
Aos poucos, as pessoas não percebem que estão ajudando a reforçar um comportamento predatório que não age altruisticamente, não age pelo que é certo e justo, mas apenas em nome do que é vantajoso. Numa sociedade assim, a vida não é respeitada.
Constato, tristemente, que embora os brasileiros sejam tão famosos pelo otimismo e por amarem a vida, a despeito das adversidades, a vida, no Brasil, não tem valor.
Familiares do brasileiro morto na Austrália reclamavam, esta semana, não da postura das autoridades australianas, segundo eles, protegendo obviamente os próprios interesses, mas das autoridades brasileiras no país, que não fizeram e que não estariam fazendo nada para solucionar o caso e torná-lo o menos doloroso possível para a família.
Será que o nosso governo valoriza a vida do indivíduo brasileiro ou só dá importância a números brutos e absolutos?
Leio matéria divulgada na edição de hoje do Diário da Região, que diz: “Dengue mata e a Prefeitura ‘comemora’”. Segundo o jornal, nota da Prefeitura de Rio Preto considerou vantagem ter ocorrido “apenas uma morte” em 2011 e uma agora. E eu pergunto: a vida de uma pessoa não tem valor? Ou só tem valor se esta única pessoa tiver milhões no banco?
Vamos comparar com a realidade em outros países. Certamente que há países onde a vida humana é ainda bem menos respeitada que no Brasil, mas se a intenção é melhorar é preciso mirar os melhores exemplos. Sem entrar nos pormenores da guerra, é fato notório, avalizado por membros da comunidade judaica, inclusive a do Brasil, que “todo soldado israelense SABE que seu país não medirá esforços para resgatá-los caso caiam nas mãos do inimigo, no que seria uma ratificação do profundo respeito de Israel à vida humana e para os caídos”. E o texto vai além: “Este princípio emana do senso de moralidade de Israel assim como da ética judaica. Trata-se de uma demonstração do poder físico e moral de Israel”.
Em cena de um especial para TV, o presidente John Kennedy, em reunião com o presidente russo, tenta persuadi-lo de que era preciso evitar o confronto. Como argumento, o fato de que muitas pessoas perderiam a vida. O presidente russo teria respondido: “O que só vai provar que nós, russos, somos muitos”.
Vou acreditar no governo que valorizar a vida de cada ser humano e não no fato de sermos muitos. Vou dar valor ao governante que enxergar a infinita potencialidade do indivíduo e na perda incomensurável que se tem a cada criança desperdiçada nas ruas e que poderia se tornar um adulto de sucesso, contribuindo, com o seu talento, para o desenvolvimento do país, provando que o verdadeiro exército é o “exército de um homem só”.
A vida de uma única pessoa precisa ser valorizada. Do contrário, continuaremos assistindo ao massacre de milhões nas estradas, em assaltos e pela forma mais vil: a corrupção.
Ainda há muito que fazer. Por enquanto, quando se tira uma vida, ainda é possível ganhar terapia, receber uma punição branda ou nem isso. Afinal, é apenas UMA vida. Quem liga?

terça-feira, 10 de abril de 2012

Viciados em celular

As paranoias já podem ser encontradas numa variedade tão grande quanto os produtos de uma loja de departamentos. Uma delas é a nomofobia – do inglês no mobile phobia (fobia de ficar sem celular). São pessoas que, ao perderem seus celulares ou ficarem momentaneamente impedidas de conectarem seus smartphones, sentem-se como aquele soldado com a perna gangrenada ao ouvir do médico: “Vamos ter que amputar, filho”.
Elas têm que estar conectadas religiosamente todos os dias a todo o momento, ou é ataque de ansiedade na certa. Para entender o ridículo da situação, seria mais ou menos assim: Ulisses, ao invés de chegar da Guerra de Troia e encontrar sua Penelope pura e casta, tricotando e desmanchando, tricotando e desmanchando, teria recebido um SMS dizendo “Pepé ta saindo com o Cláudio”. Ou ainda contemplaria petrificado as fotos do flagra tiradas com um celular e postadas numa rede social. Para se vingar, ele enviaria para toda a sua lista de contatos fotos comprometedoras da grega safada.
Difícil para o nomofóbico analisar a real dimensão da importância que ele dá a cada postagem ou checagem, e separar o que é produtivo do que é distração ou narcisismo.
Complicado conversar olhando no olho do nomofóbico, cujo celular é mais ativo do que um coelho na puberdade. Arriscar uma conversa não virtual com o nomofóbico é se sentir numa churrascaria de rodízio, onde não conseguimos concluir um raciocínio sem sermos cortados pelo tilintar de espetos de cupim, picanha no alho e lingüiça cuiabana.
Numa de minhas férias loucas, mal programadas e inesquecíveis, procurávamos o caminho para Trancoso, a partir de Caraíva, sem ter que pegar a rodovia, aventurando-se nas estradinhas de terra que ligam – ou ligavam, já não sei como aquilo está – um vilarejo de praia a outro. Aquilo era quase um universo paralelo dos contos de Tolkien, onde no lugar de elfos pululavam seres inexplicáveis de cabelos enormes em forma de microfone. Ninguém tinha nem relógio. Para saber a hora, tinha que olhar pra cima e ver a posição do sol.
Sem saber se teríamos sucesso na empreitada – dizia a lenda vigente que as chuvas dos últimos dias haviam destruído algumas pontes que ligavam as vilas – entramos no Uninho com fé, já que a fé, por aquelas bandas, não costuma ‘faiá’. As tais pontes eram pedaços assimétricos de madeira, preparados para receber mulas de quatro patas e outras mulas que insistiam em testar sua resistência em um veículo de quatro rodas.
No caminho, avistamos um menino franzino de pés descalços e bermudas desbotadas. Perdidos, paramos para pedir ajuda. Como um Yoda do Agreste, ele nos informa do preço a ser pago pela preciosa informação. Apelamos: “Dá um desconto pra gente... Olha o nosso carro!”. Movido da compaixão que só os pobres têm, o garoto releva: “Tá bom, tio, me dá cincão que eu te levo lá”. E no final ele fez muito mais que ensinar um caminho: contou histórias, nos divertiu, demos risadas, fizemos um amiguinho, tiramos fotos. Ficamos sabendo que sua mãe é lavadeira, que ele queria estudar e tinha planos. E também que aquele pedaço da praia, logo depois do coqueiro debruçado, fica lindo quando a maré baixa, deixando o mar da cor verde água dos olhos de Diadorim.
Fosse eu nomofóbica naquele ano 2000 da Miss Brasil de Rita Lee, não baixaria os vidros do meu carro para pedir informação. Consultaria o GPS do meu smartphone. E o garoto sorridente , queimado de sol, jamais figuraria em nossas fotos, nem o que aprendemos com a história de vida de alguém tão novo e que se vira tão bem usando apenas a vibração de suas cordas vocais.
Sejamos honestos, aparelhos de última geração não me dariam sequer a chance de me perder. Consultaríamos, antes de sair de casa, a previsão do tempo e as condições das estradas: chuvas torrenciais em todo o território nacional nos próximos dias, com trechos interditados. Por um desses mistérios da meteorologia, fomos abençoados por uma janela de sol baiano, em meio à chuvarada que nos pegou pelas beiradas. Se tivéssemos sido espertos como nossos telefones de hoje em dia, estaríamos a salvo, dentro de nossas casas, acessando a internet, postando vídeos e respondendo a comentários, explicando a centenas de internautas porque não fomos, sendo que 90% deles estariam se lixando pra isso, porque eles estariam postando comentários divertidíssimos sobre a Maísa que ainda não voltou de Bagdá. Não teríamos sentido o prazer de se perder em ruas de terra cercadas por amendoeiras e descobrir ali adiante um berçário de caranguejos. E pensar que foi se perdendo que um dia se chegou neste país.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

A dança das cadeiras

Que me perdoem o amadorismo leigo, que eu, de verdade, só entendo de jornalismo, tutorial de internet, bolo de chocolate e otras cositas más que a curiosidade inerente à minha sofrida profissão me permite saber. Reconheço que existem alguns tipos gênios, como Leonardo da Vinci, que pintava o sorriso da Monalisa com uma mão e com a outra se debruçava sobre estudos científicos que iam de aeronáutica e astronomia, passando por botânica e engenharia, até química, geologia, hidrodinâmica, física, zoologia e pirotecnia – e aonde mais ele não “ia”?


Confesso que uma vez destituída de minha atual função, poderia pensar em bem menos áreas férteis de onde tirar meu ganha-pão. Todas, de uma forma ou de outra, dependeriam da habilidade de comunicação, intrínseca às ciências humanas. Não ser gênio e ser honesto tem dessas coisas. Não me transformaria, do dia para a noite, numa arquiteta de sucesso. Como engenheira, poderia dar a mão a Sérgio Naya, aquele do prédio que desabou e que faleceu em 2009, dentro de um quarto de hotel – que não desabou, fique claro – conforme o Wikipédia acaba de me lembrar. Leio que na Prefeitura, quem estava na Secretaria de Cultura foi para a de Compras. Quem estava no Fundo Social foi para a Cultura. Quem estava no Planejamento foi para Obras. Quem estava na Secretaria do Emprego vai para o Planejamento. Diante desse maracatu das cadeiras nas secretarias municipais de Catanduva, chego a pensar que ou a nossa Prefeitura está cheia de gênios, que como Da Vinci dominavam as mais diversas áreas do conhecimento, ou quem nomeia para cargos de chefia no nosso Município não tem a menor ideia do que está fazendo. Ou tem, e a ideia é essa mesmo...

quarta-feira, 14 de março de 2012

Politicamente incorretos ou criminosos?


Leio no jornal que um show de stand-up com piada preconceituosa acabou em confusão. Um negro que estava na plateia se sentiu ofendido com uma piada sobre negros. A matéria reforça que, na entrada, foi pedido para que os expectadores assinassem um termo de compromisso de que não se ofenderiam com nada que fosse dito. Mais ou menos como aquela famosa frase que todo mundo já ouviu: “Se eu te falar uma coisa, você promete que não vai ficar brava comigo?”. Algo que só demonstra a covardia do interlocutor em encarar as consequências de seu discurso, como se fosse possível a pessoa saber se vai ficar brava ou não antes de saber do que se trata.
Temos visto muitos casos de humoristas sendo acusados de racismo ou processados por alegadas ofensas cometidas durante shows de stand-up. De um lado, há os que defendem o livre pensamento, a liberdade de expressão e dizem que as piadas são apenas meramente politicamente incorretas e que não há sentido cercear o humor dessa forma. Até porque tudo não passaria de uma ingênua piada. De outro, figuram, parecendo mais antipáticos, os que não viram graça nenhuma na piada.
Os ofendidos têm algo em comum: são os alvos da piada e geralmente fazem parte de alguma minoria, como negros, deficientes ou mulheres, especialmente as loiras, que não são minoria, ainda que se prove que são loiras falsas. Entenda-se como minoria, não minoria quantitativa e sim minoria quanto ao modo como são tratadas pela sociedade, se tem recebido os mesmos benefícios que as demais ou não, os mesmos a que tem direito.
O caso é que é muito fácil rir de nós mesmos e das próprias piadas, até mesmo quando elas ridicularizam a nós mesmos ou ao grupo social a que pertencemos se não nos sentimos ameaçados por tal comentário. Eu posso contar uma piada de brasileiros entre brasileiros e todos rirão, mas dificilmente ririam se a piada fosse contada por um europeu, diante de tantos casos de deportação nos aeroportos que temos acompanhado nos últimos tempos.
Dificilmente uma loira vai a uma delegacia registrar queixa porque alguém contou uma piada de loira. Pode até não gostar, mas não vai. E por que uma negra iria? Simples. Pergunte, na intimidade, a um empresário, se ele prefere contratar uma negra competente ou uma loira competente. Lembre-se de quantas paquitas da Xuxa eram negras. Veja quantas top models brasileiras são negras, num país onde quase metade da população é negra ou mestiça. Observe quantas personagens principais de novelas são brancas e quantas são negras. Visite uma classe de universidade e conte quantos são negros. E a culpa dessa discrepância não é a incapacidade, mas da falta de condições para que eles ascendam socialmente, para além da condição de passista de escola de samba ou jogador de futebol. Com tristeza percebo isso e não sou negra. Garanto que os que são o sabem bem melhor. Já ouvi de amigos negros bem sucedidos o quanto eles tiveram que ‘ralar’ muito mais pra ‘chegar lá’ do que um branco.
Quando chamadas de girafas na escola, as modelos não contam que tomaram, na época, qualquer providência legal contra isso. É fácil entender por quê. Porque ser loura e alta não as desabona em absoluto. Que o diga Gisele Bundchen, a ‘loura girafa’ que está podre de rica e só sorrisos de orelha a orelha. É a velha história de que a pedra não vai deixar de ser pedra só porque a chamam de cadeira. Quem não sofre os efeitos da diminuição dificilmente se ofende com comentários sobre suas características.
O preconceito mais grave é deficiente visual. Não vê cor ou raça. Só vê o dinheiro na frente. Ou será que o presidente norte-americano Barack Obama ou o jogador de futebol brasileiro, mundialmente conhecido, Pelé, seriam maltratados em algum ambiente, por serem negros? Antes da cor da pele deles, vêm a conta bancária, o carisma e o prestígio social.
Ray Charles pode ter encontrado dificuldades no início de sua carreira, por ser cego e negro, mas sua deficiência, lado a lado com sua genialidade, para quem o assistia, só o tornava ainda mais genial. E a cor da pele, que na época o impedia até de fazer shows em determinadas localidades dos Estados Unidos, no final de sua carreira, também já não significava nada.
Mas isso não acontece com a grande maioria negra pobre ou deficiente que não teve a mesma sorte de Ray Charles, de desabrochar seu talento e vê-lo reconhecido. Para esses casos, as piadas e demonstrações preconceituosas machucam, por uma simples razão: quem sofre não vê graça nenhuma nesse sofrimento. Experimente gargalhar num velório.
A comparação vem bem a calhar porque ambas as atitudes demonstram egoísmo, insensibilidade, falta de solidariedade para com as dificuldades enfrentadas pelo outro, pois ainda que não se sinta sentimentalmente envolvido com o drama alheio, é incapaz de demonstrar ao menos respeito. Procuram provocar risos seguindo a mesma fórmula dos programas de auditório e seus vídeos cacetadas.
O argumento dos tais humoristas para continuarem fazendo piadas politicamente incorretas é o direito a fazer rir. Pois bem, tem muita gente que não está rindo com isso. Talvez fosse o caso de procurarem fazer piadas de maneira mais inteligente. Piadas bem feitas, sem a apelação de se recorrer às agruras enfrentadas por minorias, seriam bem recebidas por toda a plateia.
Temos que nos perguntar por que rimos tanto quando o outro leva um tombo, se machuca, sofre, é humilhado. Quando rimos da tragédia alheia, do suplício do outro, seja ele grande ou apenas o desconforto de uma situação vexatória, não estamos nos engrandecendo em nada como seres humanos. Estamos apenas satisfazendo uma tendência sádica que os menos evoluídos gostam de alimentar. Tornamo-nos, dessa forma, ainda mais ridículos, pois aquele que só se sobressai quando o outro erra ou em cima das fraquezas ou mazelas dos outros prova que não é melhor, que mesmo tendo mais condições sociais de fazer melhor não consegue se destacar para além de um ser humano medíocre. Se fosse fora do comum, defenderia não apenas o estúpido direito a dar risadas, mas tentaria diminuir as diferenças, não reforçando ideias preconceituosas, até o dia em que elas, por já não existirem, não limitariam em nada a criatividade de nossos humoristas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre cortes e membranas

Existe algo de enigmático na superfície e algo que me inquieta sob a derme. Eu me descuido e a folha do papel sulfite corta meu dedo, como há muito eu não fazia. São 11h29 de um dia 8 de março.
Pensamentos são interrompidos por afazeres menores de grande importância, o tipo da causa urgente que no último suspiro não representará lampejo de memória. Lembro-me desse futuro porque o corte grita, do alto de sua insignificância. Passam agora 12 minutos das escancaradas duas horas da tarde.
E concluo agora, neste exato momento que nunca mais será igual a qualquer outro, que os olhos não tem cores absolutas. Não existem somente olhos castanhos, verdes e azuis. E nem o hazel do inglês é suficiente para explicar todas as nuances. E ainda que sejam negros – não subestime os negros – eles também não são todos iguais. Há cores, formas, brilhos e vibrações por trás daquelas membranas óticas. Possibilidades tão sem fim que as correntes nervosas paparazzi do nosso cérebro não são capazes de reportar. É preciso ir fundo, bem fundo na derme, romper a couraça da carne para além dos vasos capilares e descobrir, de citoplasma em citoplasma, pegando carona nessas balsas microscópicas, qual delas nos mostra o túnel que dá acesso à alma. Esta bela, doce e misteriosa desconhecida.
Porque há certos olhos azuis. Certos olhos azuis que observavam com doçura e se indignavam com um corte provocado por uma folha sulfite. “Que pele fina”, pensava. “Ela corta com folha sulfite a ponta de seus dedos, as laterais finas como uma massa pat à choux”. E sorria. E as sombrancelhas criavam um ângulo de singela preocupação. E a pele do rosto enrugava pelo sorriso, na pele branca veneziana, formando rococós barrocos como moldura para aqueles olhos que falavam na língua do brilho.
Pensamentos como este têm vida própria. Combino suas moléculas cuidadosamente no lodo de ideias. E agora imagino outros dois olhos azuis. Desta vez são olhos polacos de amiga.
A polaca também era amiga dos papéis e algumas vezes a celulose também lhe cortou a pele de porcelana. E ela experimentou a sensação onipresente de um corte quase invisível. Que ninguém vê, só os mais sensíveis. Que fica ali latejando, desafiando a forma patética com que foi criado.
O que não nos mata nos fortalece. E a polaca dissolveu seus potes de confusão numa infusão de ervas libertadoras. Pegou sua caneta dourada e com ela aprendeu a escrever novos capítulos em sua história, com cheiro de flor.
Ela caminha com cuidado. Tem medo de ferir e ser ferida. Não tem pressa pra decidir, mas quando tem certeza, nada  é capaz de lhe impedir. É como a força da gota d’água, delicada, no desenho da rocha desenhada, quando ela anda de braços dados com o tempo, como aliado. Meus olhos são escuros, mas tem algo de polaco, pois dentro deles desfruto da mesma tonalidade de alma.
Sabemos que podemos mudar. É fácil e cruel demais deixar a vida decidir por si própria, deixando que as tragédias se abatam sobre nós.
Mas, como aqueles olhos que já se foram, sabemos a hora certa de não decidir. A hora certa de simplesmente partir e de sequer nos sonhos aparecer. Sumir sem deixar pistas. Assim como aqueles olhos azuis.
Agora noto que a pele se regenera formando uma linha levemente áspera por onde o papel fincou. “Ela corta os dedos no papel sulfite...” E ele sorria gostoso, cheio de amor. ‘As palavras ecoam por todo o sempre’, penso agora.
Passam 37 minutos das duas horas da tarde. Tenho fome. Vou ingerir proteínas e carboidratos que conferirão ao meu corpo capacidade ímpar de deixar este corte irreversivelmente no passado. A fome simplifica. A fome animaliza, minimiza e distrai. Porque é depois da comida que vem a busca. Só depois de dar uma satisfação ao estômago agonizamos nas questões elevadas. E me lembrarei que alguém, um dia, pegou delicadamente em minhas mãos e observou, como se isso fosse uma virtude das deusas, que eu tinha a capacidade sílfide de cortar meus dedos em folhas sulfite.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A garrafa do náufrago e o gênio da lâmpada

Gênios há muitos. Dos que inventam a teoria da relatividade aos azuis esfumaçados, de turbante na cabeça e bíceps avantajados. E da clausura desta última classe de gênio surge o diabo, da mesma oficina dos desocupados.
Dizem que um dia o gênio foi libertado por um rei. E ao indagar a seu libertador provisório seus três desejos, salientando que só não poderia realizar pedidos de amor, de vida e de morte, ouviu dele a seguinte resposta:
- Não quero nada, pois já tenho tudo, minha vida é perfeita. Sou rico, tenho uma linda esposa e uma filha maravilhosa. Meu reino vive em paz e não imagino mais nada que possa desejar.
Diante de surpreendente resposta, o gênio teria ficado atônito, mas admirou a sabedoria do amo. Contou que ao longo de séculos já havia realizado mais de 1000 desejos. E que ao final, todos eles, sem exceção, haviam trazido a ruína para quem os desejou. Aproveitou a deixa para dizer o quanto sua vida era um inferno, aprisionado durante séculos e séculos naquela lâmpada velha, esperando pelo momento em que alguém o libertaria. Liberdade esta tão ilusória, pois duraria apenas alguns minutos, já que, depois de realizar o desejo alheio, ele fatalmente voltaria para a clausura.
O rei, bondoso e feliz como era – porque bondade e felicidade andam de mãos dadas – se compadeceu do pobre gênio e disse:
- Sendo assim, eu desejo a tua liberdade. E desejo também que os meus dois próximos desejos sejam teus, para que deles usufruas como bem desejares.
E imediatamente os grilhões que prendiam aquele gênio se quebraram e ele mal podia expressar o quanto estava imensamente e eternamente grato. Não conhecia, porém, a ninguém neste mundo com quem pudesse aproveitar sua liberdade. O rei, então, o convidou para viver em seu palácio.
Ao chegar ao palácio, foi apresentado à família. Não pôde conter seu deslumbre ao contemplar a beleza da rainha. A partir de tal momento, seu desejo só foi crescendo e não parava de pensar que tudo faria para ter o amor que nunca teve.
A rainha calhou de não ser tão feliz quanto o rei. Ela também almejava sua liberdade e logo iniciou um romance secreto com o gênio. Afinal o convenceu de que era necessário matar o rei. E o gênio assim o fez, em nome de um desejo doentio. Durante o plano mirabolante, utilizou os dois desejos que haviam lhe sido altruisticamente transferidos pelo rei agora traído. Momentos antes do assassinato, o gênio, sem deixar de demonstrar culpa, entretanto sem retroceder, achou por bem conceder ao rei algumas considerações:
- Sinto muito ter de matá-lo, mas meu desejo é mais forte que minha gratidão. Vossa Majestade nunca deveria ter feito aquele pedido, pois conforme eu mesmo avisei, todos os pedidos até hoje facilmente concedidos através de meus poderes terminaram em tragédia.
Esta fábula representa a capacidade destrutiva dos desejos realizados sem esforço. Um dos provérbios do Rei Salomão aconselha o leitor a não querer ficar rico da noite para o dia: “Não queiras enriquecer rapidamente”, diz ele.
Todos já assistimos histórias de pessoas que ganharam na loteria e depois perderam tudo, pois não estavam preparadas para administrar a riqueza. Agiram de maneira irresponsável, porque o problema nunca foi a falta de dinheiro, mas a falta de disponibilidade para batalhar por ele e mantê-lo. Claro que há exceções, mas há sempre algo de errado quando alguém faz de seu objetivo de vida alcançar o êxito fácil, sem mérito próprio, valendo-se pura e simplesmente da “sorte”.
A antítese perfeita em contraponto à lâmpada do gênio é a garrafa do náufrago, depositada no mar. Quem recolhe uma garrafa boiando no mar, com uma mensagem dentro, não espera tirar dela a solução para todos os seus problemas, talvez o objetivo nem seja o de encontrar solução para problema algum, mas lançar reflexões, injetar significados, evocar emoções.
Há pouco tempo uma americana de nome Paula recebeu uma mensagem em uma garrafa atirada ao mar há pelo menos 30 anos por seu pai, já falecido. A mensagem foi encontrada numa antiga garrafa de Coca-Cola, nas ilhas de Turks e Caicos. Nela, uma mensagem em papel amarelado pedia: “Devolver ao (endereço) Ocean Boulevard, 419, e receber uma recompensa de US$ 150 de Tina, dona do Beachcomer”. Tina era a mãe de Paula, que morreu na década de 80, e Beachcomer é o hotel Beachcomber, escrito com grafia errada, herdado por Paula.
Ao ficar sabendo da mensagem, através de um jornal local, Paula, que sente muita falta dos pais, contou que o pai teria escrito o bilhete como forma de fazer uma piada com sua mãe. “Foi como entrar em contato com o passado. Há uma razão para que a garrafa tenha reaparecido apenas agora; me deu arrepios, eu comecei a chorar quando soube da mensagem. Sinto como se eles estivessem me mandando uma mensagem mesmo”, disse.
Encontrar uma garrafa assim numa praia qualquer, vinda ela de alguém que está perdido ou então já nem mais neste mundo, é funcionar como uma ponte que leva a um momento singular do passado, enchendo de significado o presente. É fazer parte de um momento muito especial na vida de várias pessoas. Algo intangível, como o amor, a vida e a morte, justamente as três coisas que o gênio da lâmpada não seria capaz de dar a ninguém que lhe esfregasse a morada.
Gosto de comparar este paralelo entre a lâmpada mágica e a mensagem na garrafa com os sonhos imediatistas da sociedade atual. O frisson de se esfregar uma lâmpada mágica devidamente substituído por um vistoso cartão de crédito. Fácil e prático como um simples esfregão, permite tocar o objeto dos sonhos em questão de segundos, abolindo a sensação do dinheiro suado indo embora, do papel escorregando por entre os dedos. São sonhos pequenos, em grande quantidade, capazes de causar verdadeiros tsunamis na vida de milhões de pessoas.
Já a garrafa solta no mar e encontrada décadas depois por alguém pode traduzir o ideal dos que alimentam sonhos grandes. Sonhos tão grandes que parecem ser impossíveis, como a remota possibilidade dessa garrafa chegar a uma praia qualquer que seja habitada, em vez de enroscar num banco de corais ou de ir parar na barriga de uma orca.
Quem deposita uma mensagem no interior de uma garrafa tem noção de futuro, tem paciência, não precisa de velas, motor ou hélices, deixa o curso da vida e as ondas do mar seguirem seu destino, seu balanço. Coloca a garrafa no mar e segue sua vida batalhando, construindo canoas, pescando seus peixes, acendendo fogueiras. Vale a pena depositar a garrafa no mar, ainda que a resposta não venha em segundos, como num comentário de rede social, ainda que já não se esteja neste mundo, quando a mensagem chegar nas mãos do seu amor.
E quando este ou qualquer desejo grande é finalmente realizado como se deve, respeitando-se o caminho que deve ser traçado, os efeitos são grandes, mas abstratos demais para serem explicados. O trajeto nem sempre fácil, como não é fácil ser ético, honesto, altruísta e verdadeiro. O caminho é tortuoso, cheio de percalços e fortes tempestades. Mas quando a mensagem chega a seu destino, quando a missão é finalmente atingida, é tão forte e bonita que nos faz lembrar dos sentimentos eternos e essenciais, que prevalecem sobre a presença terrena e sobre a própria mensagem da garrafa, que subsistiu no mar durante tanto tempo.
Seria bom que mais garrafas perambulassem nos mares do mundo. É bom que permaneça enterrada nas dunas de um deserto hostil a tentadora e maldita lâmpada mágica.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Cordel de vida e de morte

Nasceu no hospital, aconchegado por bordados e pantufas
Morreu inconformado, engasgado por uma trufa

Nasceu ao léu, sem eira nem beira
Morreu desfigurado, surpreendido na trincheira

Nasceu de manhã, prematuro, de cesariana
Morreu à noite, deitado, na cama

Nasceu parido de cócoras, na beira do rio
Morreu afogado numa banheira de Beverly Hills

Nasceu dourado, amamentado por fadas
Morreu espancado, e os assassinos vestiam fardas

Nasceu defecado, no mato, um coitado
Morreu sentido, por todos amado

Nasceu indesejado e foi abandonado
Morreu diante da multidão, pela plateia ovacionado

Nasceu diante das câmeras, tecnológico à beça
Morreu dando banho no elefante que lhe sentou na cabeça

Nasceu demorado, sofrido temporão
Morreu num lampejo, de desastre de avião

Nasceu de parto normal, tranquilo e sem demora
Morreu depois de meses doente e sem querer ir embora

Nasceu amparado, sonhado, embalado
Morreu esbugalhado, sozinho, dopado

Nasceu no interior de uma caverna, no meio de um ritual
Morreu num palacete, ao som de um belo coral

Nasceu em meio a uma aventura, quando os pais escalavam os Andes
Morreu porque tropeçou e caiu, e já o haviam aconselhado “não andes”

Nasceu na lata do lixo, sem ninguém pra chamar de seu
Morreu enforcada pela echarpe Dior que enroscou no pneu

Nasceu em clima romântico, numa construção antiga de Roma
Morreu entubado, no ar condicionado, em coma

Nasceu quando a família preparava um barulhento churrasco
Morreu quando tentava arrancar uma flor de um penhasco

Nasceu forçado
Morreu matado

Nasceu chorando
Morreu de tanto rir

Nasceu em berço de ouro
Morreu devendo pra todo mundo

Nasceu já devendo
Morreu doando

Desiguais na vida
Desiguais na morte
Morte e vida
Vida ou morte
Nenhuma delas sentencia
De uma ponta ou da outra
A própria sorte

Mas o meio