quarta-feira, 14 de março de 2012

Politicamente incorretos ou criminosos?


Leio no jornal que um show de stand-up com piada preconceituosa acabou em confusão. Um negro que estava na plateia se sentiu ofendido com uma piada sobre negros. A matéria reforça que, na entrada, foi pedido para que os expectadores assinassem um termo de compromisso de que não se ofenderiam com nada que fosse dito. Mais ou menos como aquela famosa frase que todo mundo já ouviu: “Se eu te falar uma coisa, você promete que não vai ficar brava comigo?”. Algo que só demonstra a covardia do interlocutor em encarar as consequências de seu discurso, como se fosse possível a pessoa saber se vai ficar brava ou não antes de saber do que se trata.
Temos visto muitos casos de humoristas sendo acusados de racismo ou processados por alegadas ofensas cometidas durante shows de stand-up. De um lado, há os que defendem o livre pensamento, a liberdade de expressão e dizem que as piadas são apenas meramente politicamente incorretas e que não há sentido cercear o humor dessa forma. Até porque tudo não passaria de uma ingênua piada. De outro, figuram, parecendo mais antipáticos, os que não viram graça nenhuma na piada.
Os ofendidos têm algo em comum: são os alvos da piada e geralmente fazem parte de alguma minoria, como negros, deficientes ou mulheres, especialmente as loiras, que não são minoria, ainda que se prove que são loiras falsas. Entenda-se como minoria, não minoria quantitativa e sim minoria quanto ao modo como são tratadas pela sociedade, se tem recebido os mesmos benefícios que as demais ou não, os mesmos a que tem direito.
O caso é que é muito fácil rir de nós mesmos e das próprias piadas, até mesmo quando elas ridicularizam a nós mesmos ou ao grupo social a que pertencemos se não nos sentimos ameaçados por tal comentário. Eu posso contar uma piada de brasileiros entre brasileiros e todos rirão, mas dificilmente ririam se a piada fosse contada por um europeu, diante de tantos casos de deportação nos aeroportos que temos acompanhado nos últimos tempos.
Dificilmente uma loira vai a uma delegacia registrar queixa porque alguém contou uma piada de loira. Pode até não gostar, mas não vai. E por que uma negra iria? Simples. Pergunte, na intimidade, a um empresário, se ele prefere contratar uma negra competente ou uma loira competente. Lembre-se de quantas paquitas da Xuxa eram negras. Veja quantas top models brasileiras são negras, num país onde quase metade da população é negra ou mestiça. Observe quantas personagens principais de novelas são brancas e quantas são negras. Visite uma classe de universidade e conte quantos são negros. E a culpa dessa discrepância não é a incapacidade, mas da falta de condições para que eles ascendam socialmente, para além da condição de passista de escola de samba ou jogador de futebol. Com tristeza percebo isso e não sou negra. Garanto que os que são o sabem bem melhor. Já ouvi de amigos negros bem sucedidos o quanto eles tiveram que ‘ralar’ muito mais pra ‘chegar lá’ do que um branco.
Quando chamadas de girafas na escola, as modelos não contam que tomaram, na época, qualquer providência legal contra isso. É fácil entender por quê. Porque ser loura e alta não as desabona em absoluto. Que o diga Gisele Bundchen, a ‘loura girafa’ que está podre de rica e só sorrisos de orelha a orelha. É a velha história de que a pedra não vai deixar de ser pedra só porque a chamam de cadeira. Quem não sofre os efeitos da diminuição dificilmente se ofende com comentários sobre suas características.
O preconceito mais grave é deficiente visual. Não vê cor ou raça. Só vê o dinheiro na frente. Ou será que o presidente norte-americano Barack Obama ou o jogador de futebol brasileiro, mundialmente conhecido, Pelé, seriam maltratados em algum ambiente, por serem negros? Antes da cor da pele deles, vêm a conta bancária, o carisma e o prestígio social.
Ray Charles pode ter encontrado dificuldades no início de sua carreira, por ser cego e negro, mas sua deficiência, lado a lado com sua genialidade, para quem o assistia, só o tornava ainda mais genial. E a cor da pele, que na época o impedia até de fazer shows em determinadas localidades dos Estados Unidos, no final de sua carreira, também já não significava nada.
Mas isso não acontece com a grande maioria negra pobre ou deficiente que não teve a mesma sorte de Ray Charles, de desabrochar seu talento e vê-lo reconhecido. Para esses casos, as piadas e demonstrações preconceituosas machucam, por uma simples razão: quem sofre não vê graça nenhuma nesse sofrimento. Experimente gargalhar num velório.
A comparação vem bem a calhar porque ambas as atitudes demonstram egoísmo, insensibilidade, falta de solidariedade para com as dificuldades enfrentadas pelo outro, pois ainda que não se sinta sentimentalmente envolvido com o drama alheio, é incapaz de demonstrar ao menos respeito. Procuram provocar risos seguindo a mesma fórmula dos programas de auditório e seus vídeos cacetadas.
O argumento dos tais humoristas para continuarem fazendo piadas politicamente incorretas é o direito a fazer rir. Pois bem, tem muita gente que não está rindo com isso. Talvez fosse o caso de procurarem fazer piadas de maneira mais inteligente. Piadas bem feitas, sem a apelação de se recorrer às agruras enfrentadas por minorias, seriam bem recebidas por toda a plateia.
Temos que nos perguntar por que rimos tanto quando o outro leva um tombo, se machuca, sofre, é humilhado. Quando rimos da tragédia alheia, do suplício do outro, seja ele grande ou apenas o desconforto de uma situação vexatória, não estamos nos engrandecendo em nada como seres humanos. Estamos apenas satisfazendo uma tendência sádica que os menos evoluídos gostam de alimentar. Tornamo-nos, dessa forma, ainda mais ridículos, pois aquele que só se sobressai quando o outro erra ou em cima das fraquezas ou mazelas dos outros prova que não é melhor, que mesmo tendo mais condições sociais de fazer melhor não consegue se destacar para além de um ser humano medíocre. Se fosse fora do comum, defenderia não apenas o estúpido direito a dar risadas, mas tentaria diminuir as diferenças, não reforçando ideias preconceituosas, até o dia em que elas, por já não existirem, não limitariam em nada a criatividade de nossos humoristas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre cortes e membranas

Existe algo de enigmático na superfície e algo que me inquieta sob a derme. Eu me descuido e a folha do papel sulfite corta meu dedo, como há muito eu não fazia. São 11h29 de um dia 8 de março.
Pensamentos são interrompidos por afazeres menores de grande importância, o tipo da causa urgente que no último suspiro não representará lampejo de memória. Lembro-me desse futuro porque o corte grita, do alto de sua insignificância. Passam agora 12 minutos das escancaradas duas horas da tarde.
E concluo agora, neste exato momento que nunca mais será igual a qualquer outro, que os olhos não tem cores absolutas. Não existem somente olhos castanhos, verdes e azuis. E nem o hazel do inglês é suficiente para explicar todas as nuances. E ainda que sejam negros – não subestime os negros – eles também não são todos iguais. Há cores, formas, brilhos e vibrações por trás daquelas membranas óticas. Possibilidades tão sem fim que as correntes nervosas paparazzi do nosso cérebro não são capazes de reportar. É preciso ir fundo, bem fundo na derme, romper a couraça da carne para além dos vasos capilares e descobrir, de citoplasma em citoplasma, pegando carona nessas balsas microscópicas, qual delas nos mostra o túnel que dá acesso à alma. Esta bela, doce e misteriosa desconhecida.
Porque há certos olhos azuis. Certos olhos azuis que observavam com doçura e se indignavam com um corte provocado por uma folha sulfite. “Que pele fina”, pensava. “Ela corta com folha sulfite a ponta de seus dedos, as laterais finas como uma massa pat à choux”. E sorria. E as sombrancelhas criavam um ângulo de singela preocupação. E a pele do rosto enrugava pelo sorriso, na pele branca veneziana, formando rococós barrocos como moldura para aqueles olhos que falavam na língua do brilho.
Pensamentos como este têm vida própria. Combino suas moléculas cuidadosamente no lodo de ideias. E agora imagino outros dois olhos azuis. Desta vez são olhos polacos de amiga.
A polaca também era amiga dos papéis e algumas vezes a celulose também lhe cortou a pele de porcelana. E ela experimentou a sensação onipresente de um corte quase invisível. Que ninguém vê, só os mais sensíveis. Que fica ali latejando, desafiando a forma patética com que foi criado.
O que não nos mata nos fortalece. E a polaca dissolveu seus potes de confusão numa infusão de ervas libertadoras. Pegou sua caneta dourada e com ela aprendeu a escrever novos capítulos em sua história, com cheiro de flor.
Ela caminha com cuidado. Tem medo de ferir e ser ferida. Não tem pressa pra decidir, mas quando tem certeza, nada  é capaz de lhe impedir. É como a força da gota d’água, delicada, no desenho da rocha desenhada, quando ela anda de braços dados com o tempo, como aliado. Meus olhos são escuros, mas tem algo de polaco, pois dentro deles desfruto da mesma tonalidade de alma.
Sabemos que podemos mudar. É fácil e cruel demais deixar a vida decidir por si própria, deixando que as tragédias se abatam sobre nós.
Mas, como aqueles olhos que já se foram, sabemos a hora certa de não decidir. A hora certa de simplesmente partir e de sequer nos sonhos aparecer. Sumir sem deixar pistas. Assim como aqueles olhos azuis.
Agora noto que a pele se regenera formando uma linha levemente áspera por onde o papel fincou. “Ela corta os dedos no papel sulfite...” E ele sorria gostoso, cheio de amor. ‘As palavras ecoam por todo o sempre’, penso agora.
Passam 37 minutos das duas horas da tarde. Tenho fome. Vou ingerir proteínas e carboidratos que conferirão ao meu corpo capacidade ímpar de deixar este corte irreversivelmente no passado. A fome simplifica. A fome animaliza, minimiza e distrai. Porque é depois da comida que vem a busca. Só depois de dar uma satisfação ao estômago agonizamos nas questões elevadas. E me lembrarei que alguém, um dia, pegou delicadamente em minhas mãos e observou, como se isso fosse uma virtude das deusas, que eu tinha a capacidade sílfide de cortar meus dedos em folhas sulfite.