sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A garrafa do náufrago e o gênio da lâmpada

Gênios há muitos. Dos que inventam a teoria da relatividade aos azuis esfumaçados, de turbante na cabeça e bíceps avantajados. E da clausura desta última classe de gênio surge o diabo, da mesma oficina dos desocupados.
Dizem que um dia o gênio foi libertado por um rei. E ao indagar a seu libertador provisório seus três desejos, salientando que só não poderia realizar pedidos de amor, de vida e de morte, ouviu dele a seguinte resposta:
- Não quero nada, pois já tenho tudo, minha vida é perfeita. Sou rico, tenho uma linda esposa e uma filha maravilhosa. Meu reino vive em paz e não imagino mais nada que possa desejar.
Diante de surpreendente resposta, o gênio teria ficado atônito, mas admirou a sabedoria do amo. Contou que ao longo de séculos já havia realizado mais de 1000 desejos. E que ao final, todos eles, sem exceção, haviam trazido a ruína para quem os desejou. Aproveitou a deixa para dizer o quanto sua vida era um inferno, aprisionado durante séculos e séculos naquela lâmpada velha, esperando pelo momento em que alguém o libertaria. Liberdade esta tão ilusória, pois duraria apenas alguns minutos, já que, depois de realizar o desejo alheio, ele fatalmente voltaria para a clausura.
O rei, bondoso e feliz como era – porque bondade e felicidade andam de mãos dadas – se compadeceu do pobre gênio e disse:
- Sendo assim, eu desejo a tua liberdade. E desejo também que os meus dois próximos desejos sejam teus, para que deles usufruas como bem desejares.
E imediatamente os grilhões que prendiam aquele gênio se quebraram e ele mal podia expressar o quanto estava imensamente e eternamente grato. Não conhecia, porém, a ninguém neste mundo com quem pudesse aproveitar sua liberdade. O rei, então, o convidou para viver em seu palácio.
Ao chegar ao palácio, foi apresentado à família. Não pôde conter seu deslumbre ao contemplar a beleza da rainha. A partir de tal momento, seu desejo só foi crescendo e não parava de pensar que tudo faria para ter o amor que nunca teve.
A rainha calhou de não ser tão feliz quanto o rei. Ela também almejava sua liberdade e logo iniciou um romance secreto com o gênio. Afinal o convenceu de que era necessário matar o rei. E o gênio assim o fez, em nome de um desejo doentio. Durante o plano mirabolante, utilizou os dois desejos que haviam lhe sido altruisticamente transferidos pelo rei agora traído. Momentos antes do assassinato, o gênio, sem deixar de demonstrar culpa, entretanto sem retroceder, achou por bem conceder ao rei algumas considerações:
- Sinto muito ter de matá-lo, mas meu desejo é mais forte que minha gratidão. Vossa Majestade nunca deveria ter feito aquele pedido, pois conforme eu mesmo avisei, todos os pedidos até hoje facilmente concedidos através de meus poderes terminaram em tragédia.
Esta fábula representa a capacidade destrutiva dos desejos realizados sem esforço. Um dos provérbios do Rei Salomão aconselha o leitor a não querer ficar rico da noite para o dia: “Não queiras enriquecer rapidamente”, diz ele.
Todos já assistimos histórias de pessoas que ganharam na loteria e depois perderam tudo, pois não estavam preparadas para administrar a riqueza. Agiram de maneira irresponsável, porque o problema nunca foi a falta de dinheiro, mas a falta de disponibilidade para batalhar por ele e mantê-lo. Claro que há exceções, mas há sempre algo de errado quando alguém faz de seu objetivo de vida alcançar o êxito fácil, sem mérito próprio, valendo-se pura e simplesmente da “sorte”.
A antítese perfeita em contraponto à lâmpada do gênio é a garrafa do náufrago, depositada no mar. Quem recolhe uma garrafa boiando no mar, com uma mensagem dentro, não espera tirar dela a solução para todos os seus problemas, talvez o objetivo nem seja o de encontrar solução para problema algum, mas lançar reflexões, injetar significados, evocar emoções.
Há pouco tempo uma americana de nome Paula recebeu uma mensagem em uma garrafa atirada ao mar há pelo menos 30 anos por seu pai, já falecido. A mensagem foi encontrada numa antiga garrafa de Coca-Cola, nas ilhas de Turks e Caicos. Nela, uma mensagem em papel amarelado pedia: “Devolver ao (endereço) Ocean Boulevard, 419, e receber uma recompensa de US$ 150 de Tina, dona do Beachcomer”. Tina era a mãe de Paula, que morreu na década de 80, e Beachcomer é o hotel Beachcomber, escrito com grafia errada, herdado por Paula.
Ao ficar sabendo da mensagem, através de um jornal local, Paula, que sente muita falta dos pais, contou que o pai teria escrito o bilhete como forma de fazer uma piada com sua mãe. “Foi como entrar em contato com o passado. Há uma razão para que a garrafa tenha reaparecido apenas agora; me deu arrepios, eu comecei a chorar quando soube da mensagem. Sinto como se eles estivessem me mandando uma mensagem mesmo”, disse.
Encontrar uma garrafa assim numa praia qualquer, vinda ela de alguém que está perdido ou então já nem mais neste mundo, é funcionar como uma ponte que leva a um momento singular do passado, enchendo de significado o presente. É fazer parte de um momento muito especial na vida de várias pessoas. Algo intangível, como o amor, a vida e a morte, justamente as três coisas que o gênio da lâmpada não seria capaz de dar a ninguém que lhe esfregasse a morada.
Gosto de comparar este paralelo entre a lâmpada mágica e a mensagem na garrafa com os sonhos imediatistas da sociedade atual. O frisson de se esfregar uma lâmpada mágica devidamente substituído por um vistoso cartão de crédito. Fácil e prático como um simples esfregão, permite tocar o objeto dos sonhos em questão de segundos, abolindo a sensação do dinheiro suado indo embora, do papel escorregando por entre os dedos. São sonhos pequenos, em grande quantidade, capazes de causar verdadeiros tsunamis na vida de milhões de pessoas.
Já a garrafa solta no mar e encontrada décadas depois por alguém pode traduzir o ideal dos que alimentam sonhos grandes. Sonhos tão grandes que parecem ser impossíveis, como a remota possibilidade dessa garrafa chegar a uma praia qualquer que seja habitada, em vez de enroscar num banco de corais ou de ir parar na barriga de uma orca.
Quem deposita uma mensagem no interior de uma garrafa tem noção de futuro, tem paciência, não precisa de velas, motor ou hélices, deixa o curso da vida e as ondas do mar seguirem seu destino, seu balanço. Coloca a garrafa no mar e segue sua vida batalhando, construindo canoas, pescando seus peixes, acendendo fogueiras. Vale a pena depositar a garrafa no mar, ainda que a resposta não venha em segundos, como num comentário de rede social, ainda que já não se esteja neste mundo, quando a mensagem chegar nas mãos do seu amor.
E quando este ou qualquer desejo grande é finalmente realizado como se deve, respeitando-se o caminho que deve ser traçado, os efeitos são grandes, mas abstratos demais para serem explicados. O trajeto nem sempre fácil, como não é fácil ser ético, honesto, altruísta e verdadeiro. O caminho é tortuoso, cheio de percalços e fortes tempestades. Mas quando a mensagem chega a seu destino, quando a missão é finalmente atingida, é tão forte e bonita que nos faz lembrar dos sentimentos eternos e essenciais, que prevalecem sobre a presença terrena e sobre a própria mensagem da garrafa, que subsistiu no mar durante tanto tempo.
Seria bom que mais garrafas perambulassem nos mares do mundo. É bom que permaneça enterrada nas dunas de um deserto hostil a tentadora e maldita lâmpada mágica.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Cordel de vida e de morte

Nasceu no hospital, aconchegado por bordados e pantufas
Morreu inconformado, engasgado por uma trufa

Nasceu ao léu, sem eira nem beira
Morreu desfigurado, surpreendido na trincheira

Nasceu de manhã, prematuro, de cesariana
Morreu à noite, deitado, na cama

Nasceu parido de cócoras, na beira do rio
Morreu afogado numa banheira de Beverly Hills

Nasceu dourado, amamentado por fadas
Morreu espancado, e os assassinos vestiam fardas

Nasceu defecado, no mato, um coitado
Morreu sentido, por todos amado

Nasceu indesejado e foi abandonado
Morreu diante da multidão, pela plateia ovacionado

Nasceu diante das câmeras, tecnológico à beça
Morreu dando banho no elefante que lhe sentou na cabeça

Nasceu demorado, sofrido temporão
Morreu num lampejo, de desastre de avião

Nasceu de parto normal, tranquilo e sem demora
Morreu depois de meses doente e sem querer ir embora

Nasceu amparado, sonhado, embalado
Morreu esbugalhado, sozinho, dopado

Nasceu no interior de uma caverna, no meio de um ritual
Morreu num palacete, ao som de um belo coral

Nasceu em meio a uma aventura, quando os pais escalavam os Andes
Morreu porque tropeçou e caiu, e já o haviam aconselhado “não andes”

Nasceu na lata do lixo, sem ninguém pra chamar de seu
Morreu enforcada pela echarpe Dior que enroscou no pneu

Nasceu em clima romântico, numa construção antiga de Roma
Morreu entubado, no ar condicionado, em coma

Nasceu quando a família preparava um barulhento churrasco
Morreu quando tentava arrancar uma flor de um penhasco

Nasceu forçado
Morreu matado

Nasceu chorando
Morreu de tanto rir

Nasceu em berço de ouro
Morreu devendo pra todo mundo

Nasceu já devendo
Morreu doando

Desiguais na vida
Desiguais na morte
Morte e vida
Vida ou morte
Nenhuma delas sentencia
De uma ponta ou da outra
A própria sorte

Mas o meio

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Espelhos

“Olha como a gente é bonito”. E grudamos nossas bochechas como dois filhotes de hamsters. E em vez de focar as bochechas, um caricaturista exageraria os nossos sorrisos. Minha mão na sua bochecha esquerda. Mão dele na minha bochecha direita.
Ali ficávamos segundos de deleite em frente ao espelho, fazendo coisa nenhuma importante, a coisa mais deliciosa que se tem pra fazer na vida. E o espelho, nossa única testemunha, era nosso amigo.
E me lembro agora que índios não gostam de espelhos. Eles acreditam que o espelho aprisiona a alma. Por isso os vampiros não teriam suas imagens refletidas no espelho: porque eles não têm alma.  E aí deduzo que os índios já conheciam os vampiros antes de assistir o filme Crepúsculo.
Quem gosta muito de se olhar no espelho é tido como uma pessoa vaidosa, que cuida da beleza. E não é de se admirar que o espelho surgiu numa das cidades mais belas do mundo, Veneza, no século 16. Nesta época também os portugueses partiam em busca de novos horizontes, mar adentro. Desembocaram no Brasil, onde encontraram os índios e trocaram uma boa acolhida por... espelhos!
E não acho que eles foram subestimados, que os indígenas baixaram a guarda na própria terra em troca de uns reles espelhinhos. É fácil dizer isso hoje, quando qualquer celular tira fotografias. Espelhos eram caros. Caríssimos. Tanto que daí teria vindo a lenda de que quebrar um espelho dá azar. Perder dinheiro é um azar danado.
Mas espelhos não são meros objetos a serviço da vaidade humana. Eu diria que espelhos são tão necessários quanto uma sessão de análise. Todo mundo, pelo menos uma vez por semana, deveria encarar um espelho. Não pra espremer espinha, medir celulite, ver se a bunda caiu ou se a maquiagem borrou. Encarar um espelho para um check-up espiritual. Você só vai ver um rosto. Tem gente que diz que vê aura, anjo e duende. Eu digo que ao olhar pro espelho, de alma lavada, você provavelmente não verá nada brilhando à sua volta. Tampouco sombras ou anjinhos barrocos de bundinhas rechonchudas.
Encare seus olhos, estas pequenas janelas da alma. Espie por estas frestas de eternidade.
Mas cuidado. Um espelho pode ser fatal se a sua alma perder a sintonia. Que o diga Narciso, que se apaixonou por si mesmo. Morreu de inanição, tentando acariciar a própria imagem. Não caia nessa emboscada. Não seja tão piedoso consigo mesmo. Olhe no mais profundo dos seus olhos e tente ver você mesmo, como realmente é. E sem qualquer auto-complacência, avalie suas atitudes. Pergunte a si mesmo quem você é. Sem medo. Espelhos não podem te fazer mal. Eles só refletem, como a lua.
Espelhos, na realidade, não são nada. Espelhos são uns grandes sacanas. Ponho minhas mãos por sobre um deles e me aproximo de forma tal, que minha respiração embaça o vidro, mas só o que vejo e sinto é uma superfície dura, gélida e plana. Por vezes você também terá a mesma impressão. A de que espelhos são uns ordinários. Onde terão escondido preciosas imagens que lhe roubaram? Espelhos também são prisões. Guardam segredos que ficam ali, aprisionados.
Espelhos nos fazem querer ter poderes sobrenaturais. Mas não dos mais previsíveis, como voar ou ficar invisível. Eu, por exemplo, gostaria de aprisionar espelhos, cristalizar suas imagens, tornando palpáveis, a um alcance das mãos, e ao meu bel prazer, as que ficaram no passado e voaram pra longe. Se eu escravizasse um espelho, teria coisa melhor pra fazer do que perguntar se existe alguém mais bonita do que eu.
Lembro-me novamente de nós dois em frente ao espelho. “Olha como a gente é bonito”. Nossa constatação em frente ao espelho não tinha tensão. Não estávamos preocupados se havia alguém mais bonito ou mais feio neste mundo tão cheio de espelhos. Era uma afirmação, uma delícia de momento ter certeza de não haver nada mais lindo que a gente junto. Nosso creme milagroso anti radicais livres, nosso Ivo Pitanguy, nossa mesoterapia e qualquer intervenção estética de que se tenha notícia era advinda de um único advérbio: “juntos”.
Fiquei um longo tempo sem conseguir me olhar no espelho, depois que a minha outra parte refletida foi embora pra sempre. Talvez eu sequer soubesse por onde andava minha alma. Talvez aprisionada naquele espelho. Talvez ferida demais pra ser contemplada.
Hoje, já me olho no espelho, mas o reflexo que vejo não é o mesmo. E não saberia dizer exatamente tudo o que mudou. Os espelhos, estes sim, o sabem muito bem.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Pedra no sapato

“Aroldo Pedrosa é uma rocha”. Diziam isso dele, mas o que na verdade gostariam de dizer é que ele era duro como uma pedra. “Que personalidade ele tem!” Pobre é cabeça dura, mas rico “tem personalidade”. “Pessoa de opinião o Pedrosa!”.
Aroldo era difícil. E digo difícil não como atributo desejável nos tempos das moçoilas ternurinhas. Sua esposa por vezes desabafava: “Aroldo, eu te amo, mas você é di-fí-cil”. E dizia isso assim, separando as letrinhas com pausas dramáticas.
Uma pessoa que não pode ver um quadro meio torto é tida como portadora do transtorno obsessivo compulsivo, o famoso “toc”. Mas Aroldo não tinha só um “toc”, ele era um “agarramento” inteiro de manias e ideias fixas, coberto por uma casca de concreto feito com o mais indissolúvel dos argumentos para qualquer assunto de todas as especialidades em todas as hipóteses possíveis.
Para Aroldo havia sempre duas opiniões: a errada e a dele. Andava empinadinho, empoladinho, estufadinho, como um mufim de aniversário.
Quando verbalmente encurralado em uma das acaloradas discussões semânticas em que se metia, erguia o tom da voz e punha o dedo em riste na cara do interlocutor, com ares que transformariam o general Geisel na Taylor Swift. Com o tom solene, recorria a fantasias, exemplos exagerados, citações que provavelmente não seriam conferidas àquela hora da noite numa enciclopédia. E se a Wikipédia negasse, culpa dessa internet e sua tribo de loucos! A maioria das vezes funcionava. O coitado do ouvinte recuava, fingia rendição, por vezes até se desculpava. Se o caldo entornasse de vez, Pedrosa não respondia por si. Ofendia-se, torcia as palavras do “adversário”. E houve até caso em que a conversa terminou num definitivo: “Cale a sua boca!”. Afasta de mim esse cálice.
“O mundo muda, Pedrosa!”, aconselhava-lhe a esposa. Mas qual. Para Pedrosa, ‘tempo bom’ eram “aqueles velhos tempos”. Nos dias de hoje não havia nada de bom. E quanto ao futuro, Deus tenha piedade.
O tormento era quando se pegava gostando de algo sobre o qual já havia oficializado detestar. Seus alvos de crítica eram praticamente registrados em cartório com firma reconhecida. Aí se surpreendia batendo os pezinhos ao som daquela música e contendo o sorriso de canto de boca ao assistir aquele comediante. Mas contorcia-se em suas convicções. “Um homem decente é feito de constância”, acreditava.
E a comida? Um dia a esposa, pra dar uma variada no cardápio e cheia de ‘más intenções’, o levou a um restaurante de comida indiana. Já na porta do restaurante, Pedrosa arregalou os olhos: “Mas o que é isso? Você quer que eu me converta? Você sabe muito bem que eu sou crente kardecista!”.
- Mas, Pedrosa... é só a comida...
- É assim que eles começam, Ofélia, vão te enfiando pimenta goela abaixo e quando o sujeito se dá conta já está matando galinha preta.
E de confusão em confusão, preconceito em preconceito, teimosia em teimosia, Pedrosa se enrijeceu. Endureceu-se até perder a ternura pra sempre. Um dia Ofélia o chamou para o arroz com feijão de todos os dias, mas Pedrosa já não respondeu. Na cadeira art decoque herdara do avô, calado estava, calado ficou. Ofélia nem chamou de novo, pois Pedrosa não era de mudar comportamento. Foi até a sala onde estava o marido e o cutucou no ombro esquerdo – o direito ele não gostava.  Foi então que Pedrosa se desfez em mil pedaços, como uma louça chinesa espatifada.
Pedrosa não entendia que é próprio dos sábios mudar de opinião.
Pedrosa, diferente de Pedro, que negou três vezes pra depois chorar arrependimento e mudar de opinião, quis ser como Judas, que ao se negar a encarar as consequências de suas ideias erradas exterminou-se da vida, amaldiçoou-se pro mundo.
Pedrosa não sabia que o importante é ser autêntico e não ser sempre o mesmo. E que o bonito da vida é que as coisas se transformam. E que a mãe de todas as misérias é ter tudo e saber tudo. E não pensar em mais nada que se queira.
Pedrosa não descobriu porque é das crianças o reino dos céus. Que um alienígena na frente de um adulto provoca desmaios, mas na frente de uma criança é tão atrativo quando um cubo colorido. Que o bebê é o mais sábio de todos os filósofos, porque pra ele tudo é perfeitamente possível. Porque a criança é o ser em expansão que os adultos engessados deixaram de ser, como o Pedrosa, feito de massa sólida.
Ofélia varreu os cacos, vendeu a cadeira, comprou uma nova, art nouveau, e se mudou pro litoral do Maranhão, onde as marés, num único dia, transformavam a paisagem por mais de uma vez, levando pra longe todo ranço de mesmice.

Medusa Marinara

Não resisti e tive que postar esta obra do artista plástico Vik Muniz. É o artista brasileiro que mais vende no exterior. Ontem finalmente assisti ao documentário "Lixo Extraordinário", que eu super indico e que me deixou maravilhada e curiosa por outros projetos dele. Daí encontrei a Medusa, que tem tudo a ver com o blog!
Pesquisando o mito da Medusa descobri que ela era na verdade uma mulher bonita, que foi vítima de vingança e por isso foi transformada num monstro pela deusa Atena, que também a tornou mortal e com a capacidade de transformar em pedra todos que olhassem para o seu rosto. Por isso ela vivia numa caverna. Já os homens de hoje parece que estão com medo de olhar pras mulheres como se deve, ou então não as compreendem, ou então as vêem como "monstrinhas" ranzinzas. Aliás, nada pra irritar mais uma mulher que não olhar no rosto da gente...

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

As sacolas de plástico do Satanás




O Brasil tem momentos memoráveis. Lembro quando todo mundo foi obrigado a ter kits de primeiros socorros no carro. Ai de quem fosse pego numa blitz sem o tal kit. Era multa na certa. E salgada! Ficou pra sempre a dúvida no ar do que alguém poderia fazer pra ajudar uma vítima de acidente com traumatismo craniano, com um exemplar do kit nas mãos. Colocar umas gazes com fita adesiva aqui e ali? Quem se deu bem foram os fabricantes. E por falar nisso, por onde andarão os tais kits?
Eles me fazem lembrar o Kit Kat chocolate. O Kit Kat também sumiu do Brasil. Comi meu último na Austrália. A comida de lá era horrível. Eu vivia à base de Kit Kat. Mas não era mau. O Kit Kat devia ser um dos componentes da cesta básica. O Kit Kat, aliás, seria mais útil que o tal kit de primeiros socorros. Se eu me perdesse numa estrada de terra esburacada, não morreria de fome. Como um país como o Brasil, já a 6ª economia do mundo, pode não ter Kit Kat? Para os que vêem maldade em tudo: não, eu não estou recebendo cachê do fabricante pra falar deles. E nem me acusem de fútil. Não finjam que isso não é importante. Eu garanto que qualquer um que leia este artigo trocaria sem pestanejar uma caixa de kit kats por um senador. E fui boazinha agora. Pra maioria, não bastaria nem a caixa inteira. E talvez alguns fizessem jejum por um mês só pelo prazer de ‘ejetar’ um senador. Eu não entendo... talvez esses kit kats tenham ficado todos retidos em Brasília, no fim das contas... Eu abriria uma CPI pra investigar o sumiço dos kit kats.
O caso é que eles voltaram! Quando os vi na prateleira do supermercado, baixou o espírito do Scrat, aquele esquilo pré-histórico do filme Era do Gelo, que fica hipnotizado quando vê sua noz. Pois bem, engalfinhei uns quatro kit kats numa mão só e deixei brilhar a criança que vive em mim. Cheguei a casa, fui saborear, cheia de expectativa, mas o sabor... estava horrível! Me venderam um biscoito mirabel de 1979 coberto por uma camada de chocolate de quinta! Será que eu vou ter que ver canguru novamente pra poder comer um Kit Kat decente? Enfim, morar num lugar onde as coisas são o que deviam ser e os chocolates não viram uma meleca deve ser um bálsamo.
E já que eu estou falando em compras, aproveito pra compartilhar minha primeira experiência no mundo ecológico dos brasileiros de 2012. Sim, porque agora que a gente não vai ter mais sacola plástica pra carregar as compras, todos os nossos problemas acabaram. Está escrito em Organizações Tabajara, página 26.
Lá vou eu fazer minhas comprinhas. As ditas sacolinhas poluentes já não estavam lá. Pedi a biodegradável, disposta a pagar os tais 19 centavos, ainda que ache que seja obrigação do mercado pagar, conforme dita o Procon. Mas cadê as biodegradáveis? Nem cheiro. "Onde devo carregar minhas compras, então?"
A caixa disse que ia me arrumar uma caixa (caixa de papelão, digo). “Carrego onde? Na cabeça?” pergunto. "A senhora não tem carro?" Respondi um lacônico 'não'. Claro, compreensível em Catanduva. Com um Terminal Urbano daqueles, você é obrigado a ter carro. Mas “não, não tenho, não senhora”.
A caixa vai até um balcão ver o que pode ser feito. De lá, umas funcionárias cochicham e olham pra mim, com cara de espanto, como se eu fosse um alien. Me sinto péssima. Ela me vem com umas sacolinhas remanescentes do plástico maldito do Satanás. Não sei de onde tiraram aquilo. Deviam estar já na boca do sapo ou então é contrabando, já não sei. Continuo me sentindo péssima. E saio de lá mais péssima ainda em saber que em Catanduva não há coleta seletiva de lixo e que o tal plástico da biodegradável, por causa do amido de milho, vai se desprender em pedacinhos exíguos pra não entalar em bueiro e fazer um problema ficar invisível aos nossos olhos. Os pedacinhos pequetiticos do mesmo plástico, com todas as químicas poluentes, vão pra onde mesmo? Pra outra galáxia? Pra putana que los parió? No, no, no. Acertou quem respondeu: “vão pra natureza mesmo”. Como a gente é ishperto, néan??
Já ia me esquecendo, o Kit Kat, que eu nem terminei de comer, foi com plástico e tudo pra lata do lixo, destino para onde devem ter ido os infames kits de primeiros socorros que agora pululam por aí – seus restos mortais, digo – pelos fétidos esgotos do nosso Brasil varonil, onde vergonha não é roubar. Vergonha é comprar e não poder carregar. E assim eu vou descendo a ladeira: lata d’água na cabeça... lá vai Maria... lá vai Adriana... lá vai Luzia...
(As fotos que ilustram o artigo são de Kit Kits do Japão nos sabores manga e melancia, frutas... brasileiras!)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Glória e poder são maravilhosos, mas não é a vida o bastante?


No Mar Mediterrâneo, um barco à deriva. Nele refugiam-se um general Marco Antônio combalido pela batalha, acompanhado de seu fiel centurião. A cena é uma de minhas favoritas do seriado Roma. De tão realista – salvo as licenças poéticas – a sociedade que mostrou só não foi mais violenta do que cínica. Tal fenômeno social parece familiar?
Não é nada animador constatar a onipresença, ao longo dos séculos, daquele tipo de brutalidade que é soberana ante todas as outras: a indiferença cortante que me permite cravar os dentes numa suculenta maçã enquanto contemplo os pratos vazios de milhares, alçados ao céu, daqueles a quem a fome dilacerante consumiu com seus enzimas vorazes toda a vergonha que restava.
É do personagem do seriado, portanto – e pouco provavelmente do real personagem histórico – a célebre frase do título deste artigo, mas gosto de imaginar que talvez ele tenha dito algo semelhante, enquanto saboreava o gosto amargo da derrota. Pede um gole d’água do alforje do soldado. E a água ainda tinha um gosto bom – nota o amante de Cleópatra, sem qualquer banzo dos finos manjares. Logo após, a triste constatação: “Glória e poder são maravilhosos, mas não é a vida o bastante?”.
Os poderosos do Império Romano sabiam que poder e glória coroam os que dominam com estratégias calcadas em ambição, frieza e mentiras. Mas esta coroa de glória não traz consigo a felicidade e, por também não vir com o bônus da eternidade, termina sempre fatalmente consumida pelo orgulho insaciável de seus coroados. Assim foi com Marco Antônio, Cleópatra, Brutus, Júlio César e tantos outros. Uns tiveram um final trágico prematuro, outros um desfecho glorioso que perdurou por mais tempo, mas, ao final de tudo, não era a vida – e apenas ela, com tudo o que significa em sua essência – o bastante?
Mais sábio foi o Rei Salomão, que antes de morrer deu o seu veredicto: "Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento. Apliquei o coração a saber o que é loucura e o que estultícia; e vim a saber que também isto é correr atrás do vento, porque na muita sabedoria há muito cansaço e quem aumenta ciência aumenta tristeza".
Aproximamo-nos de um dos períodos de mais intenso culto às efemérides e vaidades. Os defensores da prática dirão que é o enaltecimento da cultura genuinamente brasileira, que entroniza, como em nenhum outro feito, a igualdade entre pobres e ricos. Eu, a despeito da inegável beleza e pompa dos desfiles, devo dizer que o Carnaval não cumpre bem nem a primeira nem a última função citada.
A glória e a vaidade embutidas no Carnaval, pagas a preço de ouro com o dinheiro dos nossos impostos, é experimentada por uma pequena parcela de privilegiados, os que verdadeiramente lucram com a festa, incluindo, nos últimos tempos, até quadris gringos a substituir as mulatas, estas trocadas ainda por esquálidas mulheres ricas, que pagam pelo lugar de destaque.
Enquanto isso, o povo, em vez de se revoltar com as notícias de corrupção do legislativo e judiciário, têm a visão inebriada pelo brilho da festa, como na política do panis et circenses (pão e circo) empreendida pelos romanos.
Recentemente, no Brasil, foram longe demais ao subestimar o povo. O programa de péssimo gosto “Mulheres Ricas”, de tão cínico, ofendeu. Para criticar, costumo assistir ao menos a um episódio, mas confesso que deste não cheguei a ver nenhum. Não sucumbi aos apelos de qualquer forma de nenhuma das “personagens” apresentadas, com seus lábios de Pato Donald e bochechas de travesseiro entupidas de botox. A mim bastou ler nas notícias o impacto de algumas de suas pérolas de vaidade, desferidas com total indiferença. Não seria isso uma nova forma de maldade? Uma espada que não esquadrinha as tripas de ninguém, mas embrulha o estômago de todo mundo.  
Sinto muito, darlings, mas no final não vai sobrar botox sobre botox. É triste e solitário chegar ao fim da vida e perceber que se perseguiu o tempo todo o que era superficial. Como já dizia Madre Teresa de Calcutá, a falta de amor é a maior de todas as pobrezas. E o amor, tão qual a vida, é mais do que suficiente. O resto é acessório. Emplumado, emperiquitado e maquiado.