quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Segundos

Quer saber a diferença que fazem alguns míseros segundos na sua vida?
Meu marido é armênio. Como todo armênio é sensível à história do genocídio e principalmente ao fato de o mesmo ser negado até hoje pelo governo turco. Mas, prático e calado, raramente fala desses assuntos. Levou, por isso mesmo, anos, para que esse detalhe de sua história fosse a mim relatada.
Com 30 anos, ele obviamente não viveu aquela época. O genocídio armênio aconteceu entre 1915 e 1918. Mas sua vida e a minha foram afetadas. Mesmo sendo uma cidadã brasileira, sem qualquer ascendência oriental, meu destino teria sido totalmente diverso.
Ocorre que, com apenas seis anos de idade, o bisavô do meu marido escapou de ser morto, num dos assassinatos em massa empreendidos pelos soldados turcos.
Presos e mortos primeiramente os pais de família, mulheres e crianças eram transportadas ao deserto da Síria, país que na época também estava sob o jugo dos turcos. No caminho, não havia comida e qualquer aldeão que lhes alimentasse também poderia ser morto. No comando, eram escaladas gangues de curdos. Alertados pelo governo da Síria de que eles não sobreviveriam a uma jornada tão longa até o deserto sírio, sem alimento, os soldados passavam, então, a eliminar os armênios, entre eles mulheres e crianças.
Um a um, as gargantas de todos eram cortadas. Por vezes, crianças sobreviviam, órfãs e com as costas machucadas. Quando os soldados esfaqueavam as mães, estas protegiam os pequenos. A lança varava o corpo da mãe, atingindo parte do corpo da criança, que ficava encolhidinha entre o corpo da progenitora. Os soldados pensavam que estavam todos mortos e, assim, sobreviviam alguns.
No caso do bisavô do meu marido, quando ia ter a garganta cortada, eis que um soldado grita. Ordena que já basta. Uma ordem proveniente do governo turco havia chegado. Cerca de 1,5 milhão de armênios já havia sido eliminada e estes, na visão dos turcos, já não representavam nenhuma “ameaça”.
Órfão e entre centenas de corpos, um garoto de apenas seis anos corre em busca de algo simples. Não casa, amiguinhos, brinquedos, nem pai, nem mãe. Apenas a possibilidade de manter-se vivo. O instinto de sobrevivência falando mais alto, sem tempo nem parar chorar.
Difícil imaginar que destino poderia ter se descortinado a uma criança nessas condições. Poderia crescer e tornar-se um psicopata, como poderia ter crescido e se tornado um cidadão de bem, como se tornou, gerando filhos, netos e bisnetos, entre eles das pessoas mais doces e amorosas que já conheci.
Vejo o poder de segundos libertadores. Alguns segundos mais e sua garganta teria sido cortada. Ele não poderia ter tido um bisneto chamado Ares Karasu, o atual amor da minha vida. O homem que me salvou de uma grande dor, de uma grande perda. A perda do meu marido falecido em 2006, vítima de um acidente automobilístico, da falta de responsabilidade de um motorista inconsequente.
Ares não poderia ter sido um marido melhor para uma esposa viúva, tão sangrada pela vida.
Compreensivo, nobre de espírito, compassivo, é certamente o homem que meu primeiro marido, que tanto me amou, adoraria que tivesse tomado seu lugar para cuidar deste velho flagelado de guerra: meu coração.
Acidentes, assassinatos, omissão. Somos todos, de uma forma ou de outra, vítimas de segundos fatais ou de segundos salvadores.
Então percebemos também que armênios, turcos ou brasileiros, somos, antes de tudo, seres humanos, tão diferentes em nossas culturas, mas tão iguais em nossos anseios, sentimentos, feridas e carências.
Podemos concluir o quanto a discriminação e a incompreensão não têm qualquer sentido e os pecados do passado, para serem perdoados, precisam, primeiramente, ser admitidos. Afinal, ele, o senhor tempo, continua rugindo, senhor absoluto de todos os destinos, e não sabemos quanto tempo ainda temos para fazer a coisa certa, quantas gargantas simbólicas ou literais ainda serão cortadas por culpa da nossa omissão, quantos pessoas maravilhosas iremos impedir de vir ao mundo porque não investimos adequadamente nos seres humanos que estão hoje à nossa volta.
Finalmente, quantos destinos serão alterados, quando tudo poderia ser infinitamente melhor? As respostas saberemos em breve, porque tudo é uma questão de tempo.
No momento, gosto de pensar que aquele menino correndo, rumo ao desconhecido, não salvou apenas a si mesmo. Salvaria, indiretamente, e 90 anos depois, a minha vida.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O filófilo nosso de cada dia

O mundo nunca teve tantos pensadores ao preço de um. Assistir um filme por dia, dar pitaco nos enquadramentos e fazer referências a cenas de clássicos do cinema de vez em quando fazem de você, se não um cinélogo – se é que o termo cabe – um cinéfilo digno de um rótulo cult nas rodas de amigos, regadas a néctar de Baco.
A pressa é inimiga da perfeição, mas não ter defeito é um luxo que ninguém pode bancar. Os meios de comunicação pós-McLuhan desglamourizaram todo mundo. O sonho acabou: até em Hollywood se mostra o cofrinho.
Se a democratização da imperfeição torna os deuses menos divinos, também gritou um “passinho pra frente, por favor”, na primeira classe do Titanic. Vamos apertar, gente, que estão chegando mais “ófilos” que ilhas na terra de Aristóteles.
Se necessitas tocar nas chagas, Tomé, dê uma sapeada no Facebook, Twitter e outras redes sociais. Ninguém pousa serenamente a cabeça no travesseiro sem antes postar algo interessante, chocante, fofinho ou extasiante.
Em lugar de audiência, cada usuário mede sua popularidade pela repercussão das postagens, quantos comentários rendeu, quantas pessoas curtiram ou compartilharam.
Não é suficiente apenas viajar e conhecer um lugar incrível. Antes de desfazer as malas, ou até mesmo durante a viagem, é um prazer postar fotos do lugar e se sentir uma Adriane Galisteu na Revista Caras.
As festas também não são mais festas se não forem publicadas nas redes sociais. Tal procedimento é importantíssimo para que todos saibam o quanto você é querido. Olha quantos amigos você tem!
Nem tudo é mero brioche de Versalhes nessa corte virtual. As redes cumprem um importante papel de denúncia social, envolvendo mais a população em decisões importantes para toda a sociedade. A velocidade de propagação da informação traz em seu bojo espaço para sofismas e notícias não bem apuradas. Faz parte. Basta a cada dia o seu deslize.
Se a geração de Nelson Rodrigues fazia de tudo para zelar por sua privacidade, o jovem de hoje não liga muito para a superexposição e suas consequências, um terreno vastíssimo para a peneira das empresas, que utilizam as redes para seleção de candidatos, cruzando o que vêem com as informações oficiais contidas nos currículos.
Que maravilha as redes sociais! Se no passado a maioria chiava quando desafiada a redigir uma redação, hoje acha uma delícia se sentir um pouco poeta. Nas manhãs mais inspiradoras, compartilham o que sentem, seus valores, opiniões e indignações, mensagens otimistas ou chacoalhões, lembrando até fatos históricos que marcaram a humanidade.
Finais e inícios de ano são momentos cruciais. É quando as pessoas se sentem mais sensibilizadas. As redes superlotam de filósofos ou, num ousado neologismo, filófilos, sem-mestrado e sem-PHD.
Os que não foram abençoados pela pena de Camões parafraseiam. Dos parafraseados em língua portuguesa, talvez a campeã seja Clarice Lispector, que já disse por aí até o que ela nem sonhou dizer. Bom pra ela, que é plagiada ao contrário.
Para mim, entretanto, o mais delicioso é quando as redes lembram os aniversários. Você não tem mais que necessariamente lembrar do fulano. Não vai mais encarar expressões emburradas nem passar dias se desculpando. Entretanto, ainda estou tentado descobrir o mérito de se lembrar do aniversário de alguém porque o Facebook avisou. E aí são alguns segundos redigindo: “parabéns, muitas felicidades”, “ você é especial, continue assim”, “que seus sonhos se realizem” e coisas do tipo.
Que entrem as frases de pára-choque de caminhão, filosofia barata, afetação, informação, surpresa, diversão. Logo será politicamente incorreto dizer que eles não podem desfrutar da mesma seara de Carlos Drummond de Andrade.
Nossos filófilos, os filósofos sem diploma das redes sociais e blogs, na mesma linha dos enófilos que, sem nunca ter pisado numa faculdade, nos deliciam com suas pérolas emprestadas enquanto visitamos sua adega de vinhos, são um alívio, um soco no estômago da chatice institucional, dos senhores feudais e seus 90% de analfabetos, do manequísmo dos perfeitinhos bonzinhos perseguidos pelos mauzinhos. São de uma sinceridade cortante quando esfarelam nosso mar de ilusões e mostram quem realmente são, mesmo quando escancaram seu lado mais vibrante e elevado. Sirvo-me dessa taça sem medo. Não há suspiro de insinceridade que resista ao décimo gole.
Quem nunca deu uma espiadinha ou extravasou seu lado filófilo que atire a primeira pedra. Em tempo, e para não perder a prática: “Quem está ao sol e fecha os olhos começa a não saber o que é o sol e a pensar coisas cheias de calor/Mas abre os olhos e vê o sol e já não pode pensar mais nada/Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas”. Palavras de Fernando Pessoa. Gostou? Curta, comente, compartilhe.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Quando você se importa com a cidade?


Quando é que a gente se importa com a cidade onde vivemos? Quando precisamos dela. Quando nos identificamos com ela. Quando nos sentimos cidadãos. Quando somos tratados com respeito por quem está na administração e não somos vistos apenas como pagadores de impostos.
O caso é que aquela pessoa que não ‘precisa’ da cidade para sua realização pessoal não vai se revoltar facilmente com as injustiças. Milionários que exploram culturas tradicionalmente caracterizadas pelo monopólio e pela exportação, quando precisam comprar, vão aos grandes centros, também Europa.
Quando precisam viajar, vão de avião. Quando ‘andam’ pelas ruas, o fazem a bordo dos carros mais confortáveis. Se ainda assim o carro tiver qualquer problema, devido aos buracos, arrumar não é problema. Há dinheiro.
Se não há opções para os filhos estudarem, eles têm recursos para mandá-los estudar fora e depois os apoiarem para carreiras fora da cidade ou mesmo na administração dos negócios da família.
Para o lazer, não faz falta a cidade. Eles têm grana para viajar para onde quer que seja. As distâncias se encurtam quando se tem dinheiro.
Se a saúde pública não é de boa qualidade, se o posto de saúde não tem médico, se as especialidades médicas não estão a contento, é fácil resolver. Basta procurar qualquer grande hospital em outra cidade, Estado ou país.
Se a segurança não está lá essas coisas e a droga toma conta da cidade, eles são os menos prejudicados. Pagam segurança particular, se trancam em condomínios fechados com toda a segurança, investem em sistemas de alarme e monitoramento, entre outras providências que o vil metal é capaz de providenciar.
Falta de emprego lhes tira o sono? Que piada. Pois se eles estão com as contas bancárias atoladas de dinheiro e são capazes de garantir uma boa colocação para seus entes queridos e amigos próximos. Estando tudo bem na vizinhança é o que importa.
A cidade não tem vaga pra estacionar? E? “O que você deseja que eu faça com essa informação?” – eles diriam, com ar blasé. Milionário ri de problemas como esse. Porque rico não corre atrás, manda buscar. E como já foi dito antes, faz suas ‘comprinhas’ fora daqui. Milão, Londres e Paris não são o limite. Porque a Oscar Freire haveria de ser?
Calçadas esburacadas representando risco para as pessoas e principalmente a população idosa e mais carente? Ruim pra esses pobres coitados. Para os ricos, pisar numa calçada dessa é quase tão provável quanto pisar em Plutão. Eles percorrem a Piazza San Marco, as ruas estreitas da Provence e as calçadas efervecentes da Broadway.
Sistema de transporte público de má qualidade? Vou pular esse item, pois é mais do que óbvio onde eu quero chegar.
Falta de incentivo ao comércio local e à vinda de indústrias? Quem liga? Pois se eles são os donos das poucas grandes indústrias que existem. E estão com os olhos virados para fora daqui, não para dentro.
Pobreza e retrocesso que leva aos despreparo e à péssima qualificação profissional para o trabalho? Quem se importa? Ricos não. Eles trazem funcionários de fora, formados em universidades da Capital, com cursos no exterior. Quem tem que aturar o problema são os comerciantes da cidade, micros e pequenos empresários que sofrem pagando impostos, com a falta de estrutura da cidade e o descaso. E, como se não bastasse, ainda são ignorados justamente nos assuntos concernentes a eles. Mesmo sendo eles a maioria, ou seja, o setor mais expressivo na geração de empregos – duradouros, não sazonais – e um dos mais expressivos também no repasse de verba para a municipalidade.
Vemos dia após dia uma sensação de abandono, sentida principalmente pelos pobres da cidade e pelos microempresários, ou seja, por gente pequena. Pois aqui só vemos os extremos da corda: os muito ricos e os muito pobres, com raras exceções, além de uma classe média média se equilibrando no meio, como por um milagre.
Estão todos cansados, é verdade, com tanta palhaçada e desconsideração. Recentemente, uma senhora de 67 anos caiu numa calçada em frente ao Terminal Urbano. O Jornal do Comércio já havia noticiado em sua edição de novembro o risco que isso representava. E isso após meses e meses nessa situação, como se aquele pedaço da cidade – em pleno centro! – não existisse. Como é possível não enxergá-lo, estando ele em frente ao único Terminal da cidade, ao único Fórum, e próximo à Prefeitura e à Câmara!!!
Ficamos mesmo com a sensação de que os poderosos de Catanduva não precisam da cidade, não precisam ficar aqui, por isso não a enxergam. Sim. Literalmente não a vêem.
Precisamos urgentemente de mais gente que precise da cidade, de mais indústrias, de mais empresas que se fortaleçam e se propaguem. De mais ensino de qualidade e mais desenvolvimento para atrair profissionais e não para expulsa-los daqui com sua falta de oportunidades. Só assim teremos gente que vem para morar aqui, precisando daqui, e não de passagem, como vêm os cortadores de cana – trabalho insalubre, peregrino e de pouca rentabilidade.
Chega de injustiças e coronelismos. Chega de demagogias e provincianismo. Chega de fazer quem precisa da cidade se sentir um estrangeiro dentro da própria cidade. Essa população maltratada nunca vai se sentir estimulada a fazer nada pela cidade. Nunca será motivada a melhorar para crescer. Pois não há para onde crescer. Chega de fazer dessa cidade um lugar onde quem tem poder e dá as cartas só precisa do chão onde pisa para retirar os recursos que o farão pisar a quilômetros daqui. E depois ainda batem no peito, dizendo que “são daqui” e não são “forasteiros”, fechando, muitas vezes, as portas, para quem vem de fora ou é de fora do “círculo dos tradicionais” e quer fazer algo diferente e inovador. Eles não se importam porque não precisam. Se você precisa, importe-se!

terça-feira, 20 de setembro de 2011

As fofoqueiras sobreviveram


Se a inveja é uma merda, a fofoca é uma disenteria. Epidemia que, diferentemente da peste negra ou do sarampo, nunca foi controlada. Está sempre na ponta da língua de todos que têm uma para chamar de sua.
Já dizem que falaria bem melhor o mudo se sua atitude manifesta o que acredita. E ao menos não apurrinha ninguém. Mas fofoca só apurrinha se for o nosso nome que estiver fritando por aí.
E tem sido assim desde os tempos em que a serpente espalhou a primeira fofoca: “Ouvi dizer que Deus não quer que vocês comam do fruto desta árvore porque não quer concorrência”.
De Cleópatra, falaram horrores em Roma. Pois foram espalhar que ela, a deusa do Nilo, num arroubo de ostentação e orgias, triturou pérolas negras dos mares do sul numa taça de vinho e as bebeu. Dizem que era apenas um anti-ácido. De boca em boca chegou-se a Roma a fama de uma devoradora de homens, devassa, que não sabe se maquiar. Delineador preto carregado, como uma moura de além mar que nas terras brasis viriam séculos depois fugir da sina messalina numa terra de homens, onde ninguém fofoca porque a necessidade não deixa.
Não há fofoca que resista a uma grande tragédia. A fofoca se alimenta da mediocridade, mas não subsiste diante da calamidade.
A fofoca também conduziu os caminhos da independência do Brasil. O pai chama o filho num canto: “Andam dizendo por aí que vão proclamar a independência. Vai tu e proclama primeiro, antes que um aventureiro o faça”.
E assim, de fofoca em fofoca, germinamos. De um disse-me-disse insano florescemos, cultuando a futrica como nosso mais magistral esporte nacional. Coroando e depondo líderes com base na fofoca. “Dizem que comem criancinhas”. “Falam que tem uma amante”. “Afirmam de pés juntos que é ateu. Sequer um dia pisou numa Igreja, vê só”.
As fofoqueiras de Camille Claudel sobreviveram. Permaneceram incólumes às cheias do rio Sena e aos ataques de fúria de sua criadora.
Fofoqueiras sanguessugas. Vampiras vorazes que sobrevivem da energia alheia. Não pousam seu olhar sobre o horizonte. Curvam-se feito hienas em direção a sua carniça verborrágica. Em realidade, estão nuas e miseráveis, com seus traseiros gordos reluzindo como escudos e rostos obscurecidos pelo anonimato. E assim permanecerão, sem jamais serem desvendadas ou despertar a curiosidade dos outros. Seus olhares não hipnotizam, atraem pelo veneno que destilam, exalando um cheiro doce de néctar. São incapazes de um mergulho regenerador dentro de si mesmas.
Assim, elas resistiram até ao “sacrifício humano” empreendido por uma frágil e despedaçada Camille, quando estraçalhava os pedaços palpáveis de seus muitos fantasmas. Não podia suportar o próprio espelho esculpido em bronze, lembrando-a constantemente de que apesar de chama acesa fora reduzida às sombras. Precisava fugir de si mesma. Não suportava sequer falar de si própria. Não desejava apenas vender obras, mas aceitação. Não conseguiu. Nem da sociedade, nem dos pais, nem do próprio irmão a quem tanto inspirou. Por amor, aceitou ser esculpida e moldada, reduzida a musa, se doando, vulnerável, oferecendo o próprio pescoço, dissolvendo em meio à espuma de um mar de promessas não cumpridas e de expectativas desfeitas, no seu próprio sacrifício, até se imortalizar no singular.
As fofoqueiras subsistiram, coitadas, com seus traseiros anônimos, para sempre no plural, alimentadas por novas futricas. Quem as têm para se proteger do flagelo de si mesmo não precisa de roupas.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Crianças grandes

Ser criança é perdoar fácil. É brigar num segundo e no minuto seguinte passar o dedinho e ficar ‘de bem’. Ser criança é não pensar no futuro, só no passado. É viver perguntando: ‘de onde eu vim, mãe? – ou nem perguntar mais, só “googar” e pronto. Ser criança é se irritar com a pergunta insistente dos adultos sobre o que se quer ser quanto crescer. Mas crescer parece um sonho tão distante. O discurso da professora de que estudar é bom pra ter um futuro não é argumento suficiente pra tornar os estudos deliciosos porque criança não tem muita noção de futuro. Se pega um dinheiro na mão, raramente vai pensar primeiro em guardar no cofrinho. Vai correndo no mercado comprar chocolate.
Enquanto se é criança, essa impulsividade é até bonitinha. O problema é que, com raras exceções, nós brasileiros estamos vivendo num mundo de adultos infantilóides, principalmente no que tange à educação financeira. Parte da culpa é dos pais, que não educam seus filhos. Vivem encalacrados em dívidas, justamente porque seus pais também não os ensinaram. É um ciclo vicioso. Parte considerável da culpa é do governo, que nunca pensou no futuro.
Lemos nas notícias que o Brasil perdeu o equivalente a uma Bolívia só com desvio de dinheiro. As tarifas dos serviços essenciais à população são aumentadas, mas não se investe em infra-estrutura e lá vem apagão. Promove-se a gastança para fins eleitorais, com projetos populistas, e não reformas estruturais, e lá vai mais dinheiro para entupir o gargalo das contas públicas no futuro. Não vemos o povo muito preocupado com tudo isso, assim como não estão tão preocupados se terão como pagar as dívidas contraídas hoje.
Quem não se lembra dos anos 80, chamada década perdida? Lembro até do som das maquininhas famigeradas, a cada dia mudando o preço dos produtos. Ninguém sabia o que ia encontrar no supermercado no dia seguinte. A política econômica tumultuada a que os brasileiros estiveram sujeitos não os estimulou a pensar no futuro. Sobreviver àquele dia mal já era suficiente para erguer as mãos para o céu. E parte dessa mentalidade perdura até hoje. “O futuro a Deus pertence. Deus sabe o que faz. Deus escreve certo por linhas tortas”. Não. Deus não escreve em linha torta. O brasileiro é que sempre gosta de jogar para o andar de cima as responsabilidades que são dele. Seu individualismo só não é maior que sua vaidade e disso sabem as agências bancárias. Que ‘chic’ é ter um cartão na mão!
Reportagem do Globo Repórter mostrou que no Brasil já se formam as primeiras escolas de educação financeira, para brasileiros que, mesmo sendo pessoas de bem, se vêem mergulhados em dívidas simplesmente por deficiências no ensino tanto escolar quanto familiar. Perguntados sobre o pagamento da fatura mínima do cartão de crédito, se eles sabiam que no mês seguinte seriam incididos 10% sobre a quantia não paga no mês anterior, os cidadãos faziam aquela cara de pano de chão. “Ah... é? Não sei, não... aí tem que calcular, né? Os números... a gente não entende disso, não”. Aham... sim, tem que calcular. Não adianta fugir da escola. Não se pode deixar de ler só porque é chato. A mesma curiosidade que se tem pra comprar tem que existir pra aprender. Não gostou de um livro? Procure outro. Outro dia vimos nos jornais um exemplo de uma cidadã catanduvense de origem humilde que é recordista em livros emprestados na Biblioteca Municipal. Pois bem. Se um livro não te agradou, tente outro, e mais outro. Há livros e livros, assim como há filmes e filmes, mas a tela nos dá tudo mastigado e o livro nos instiga a imaginação, nos leva a pensar. Não foi isso que nos ensinaram tão sabiamente nossas professoras de primário cheirando a lavanda? A maioria delas hoje talvez não saiba ligar um computador, mas garanto que não fazem feio numa boa conversa e não passam vexame quando têm que redigir um texto.
Não precisa estudar pra ser o físico ganhador do Nobel, mas é preciso ter a mínima noção do que é percentagem, do que incide no seu orçamento, do que são juros. Ainda que você odeie matemática, como esta pobre jornalista que escreve este artigo, é preciso sim saber entender este mínimo mundinho matemático do qual todos dependemos e ajudamos a construir. Afinal, do calendário às notas musicais, passando pelo movimento e forma das nuvens no céu, tudo é matemática. Até as proporções do rosto de uma pessoa, aos teus olhos, considerada bela.
Talvez isso falte ao dia a dia escolar e familiar do brasileiro: tornar o ensino da língua e da matemática algo mais próximo da nossa realidade. Algo que não se confunde na lousa em equações x, y, z sem sentido, mas que façam parte do nosso cotidiano, como, por exemplo, quanto se gasta para comprar determinado produto nas diferentes formas de pagamento. Algo que não reduza a rica língua portuguesa a um amontoado de regras gramaticais chatíssimas até pra quem ama ciências humanas, mas que nos apresente a um mundo fantástico de palavras que nos emocionam, nos informam, aguçam nossa curiosidade, deixam-nos indignados, porque fazem parte da nossa vida, do que somos, porque nos ajuda a descobrir quem somos e o que podemos ser, porque nos leva a interpretar textos e, consequentemente, realidades.
Mas será que os professores sabem disso? Sabem o que são e o que podem ser? Duvido. São explorados, tratados como pano de chão pior que a cara de seus alunos no futuro. Estes vivem enredados em cantos da sereia do nosso mercado financeiro, gostam de fingir que são ricos, como Peter Pan numa Terra do Nunca, onde o futuro, aquele dia em que eu tenho que pagar, ou aquele dia em que não terei mais a mobilidade e saúde de sempre, nunca chegará. ‘E não terei de me preocupar com atendimento médico de qualidade, com aposentadoria, com o estudo dos meus filhos’...
E a história se repete no Brasil, um gigante adormecido, uma imensa Terra do Nunca, cheia de adultos que nunca crescem. Um país da promessa, onde esse dia, o futuro, nunca chega.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Dos clientes de Roma aos clientes de hoje

            As palavras perdem significado e força. Desde que passamos a sentir um arrepio quando ouvimos aquela voz de alegria plastificada, num exaustivo fim de tarde regado a telemarketing, começamos a desacreditá-las. Ou quando uma carta de uma nova loja se dirige a você como um velho amigo de infância.
Palavras prevaricam no leito da promiscuidade verborrágica, quando expressam carinhos que não existem e sentimentos que se dissolvem. Palavras se transformam em desavergonhadas messalinas. Escravas ao bel prazer do diálogo dos homens, nem sempre o das academias de letras, podem estar sob o jugo das lavadeiras, as mesmas que fervilhavam feito vermes nos cortiços dos romances realistas. A língua é uma hippie dispersa, uma cortesã perversa. Muda como o vento e as correntes marítimas.
            A palavra anedota é um exemplo. Hoje seria o mesmo que uma piada, mas originalmente servia para designar algo inédito. A palavra ‘assassino’ vem do árabe haxaxi. Na época das Cruzadas, os chamados hachachis consumiam hashish antes de investirem sangrentos ataques contra os cristãos.
E o cliente, de onde vem? Fontes nos levam ao latim ‘cliens’, que por sua vez nasceu do “cluens”, do verbo “cluere”, que significa “ouvir, atender, obedecer”. Durante a República Romana, ricos falidos se colocavam sob a proteção de um poderoso. Quando este saía à rua, era cercado por um bando de ‘clientes’, que muitas vezes estavam apenas atrás de um pouco de comida. O ‘cliente’ não passava de um plebeu sob a proteção de um nobre. Um legítimo “puxa-saco”. Com o tempo, o sentido da palavra foi mudando. Primeiramente, para “aquele por quem um advogado age”. Tempos depois, para “aquele para quem um serviço é prestado”, para finalmente se tornar o que é hoje: a razão da existência de qualquer negócio. O cliente passou a ser paparicado.
Como num daqueles mistérios nebulosos que só as lendas de Avalon e as operadoras de telefonia conseguem sustentar, houve uma época em que ligações telefônicas para um hospital caíam por engano no meu local de trabalho. Certa vez, atendi um vendedor de produtos hospitalares. Se meu ouvido fosse diabético, o tom de voz açucarado teria me deixado surda. Desfeito o engano, ele se tornou ríspido e desligou rapidamente, sem ao menos se despedir.
O Dia do Cliente, comemorado neste mês, é propício para reflexão. Como o cliente quer ser tratado? Com a secura de asfalto anti-derrapante ou com o melado da fantástica fábrica de chocolate? A resposta é: nem um, nem outro. Não há nada de errado em se ter o interesse em vender, mas bom senso, educação e boa vontade são atributos que deveriam ser incorporados por todas as pessoas. O cliente prefere ser atendido por alguém natural, com empatia para perceber suas necessidades, solucionando-as com eficiência, a um vendedor que o atende com simpatia forçada. As pessoas não são iguais. Atendimentos também não deveriam ser. E atendimentos também mudam com o tempo. Assim como as palavras. Hoje, com o crescimento das vendas online, o cliente é um profundo conhecedor do produto, não quer perder tempo e adora ser surpreendido.
Estratégia de venda não tem nada a ver com falsidade. Ninguém precisa ser “puxa-saco”. O cliente porque já o deixou de ser há seculos. E o vendedor porque é, acima de tudo, um profissional requisitado e desejado, quando pode ter a honra de atender não somente consumidores, mas clientes, com todo o significado que a palavra sugere nos tempos atuais.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A morte precoce sem culpados

Toda morte precoce gera nos enlutados uma sensação inquietante que nos leva a uma busca irrefreável por culpados, produtos da imprudência, indolência, falta de preparo, de sensatez ou mesmo de amor. Se o morto é uma celebridade, deixa uma legião de fãs a chorar pela sensação de abandono. Mesmo que nunca tenham travado uma conversa informal com o famoso, sentem-se próximos, porque se identificam com a imagem de alguém que é sinônimo de sucesso.
            Ninguém quer se identificar com o feio, o fracassado ou com o eternamente em segundo lugar. Os eternos segundos lugares são execrados.
Da mesma forma como os prêmios de consolação não consolam ninguém, figuras públicas alçadas a posições de vitória são como uma catarse para todos os que desejam ser admirados pela ousadia.
Sadicamente, gostamos de vê-los em situações prosaicas ou até mesmo vexatórias. Vê-los mais humanos nos faz sentir mais deuses. Quando reduzidos a pó, assumimos nosso tom professoral. Gostamos de comentar, como uma forma de pegar carona no legado brilhante do morto louco.
A recente morte de Amy Winehouse, que de tão louca, para muitos, mais previsível do que precoce, causou comoção. Mesmo tão previsível, a morte causou uma pontinha de polêmica e levantou a tendência que as pessoas têm para o lado místico. Estão falando na maldição dos 27 anos, por ela ter morrido com a mesma idade de Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Kurt Cobain. Mas ninguém se pergunta com quantos anos morreram os milhares de vítimas jovens que as drogas levam todos os anos.
Eis aí o paradoxo. Se os talentos foram interrompidos tão cedo, deveriam continuar sendo invejados como símbolo de sucesso?
Mesmo não sendo um exemplo de vitória, Amy, como numa mensagem póstuma, afirmava que poderia não viver muito, mas ao menos viveria como queria. Ah... a promessa de liberdade e seu prazer sem culpa.
A maioria dos jovens quer tudo. Sempre à espera de um milagre, continuar vivo, não importando o que se faça, mas sem envelhecer, como os personagens bonitos do juvenil blockbuster Crepúsculo.
Só não envelhece quem morre jovem, perpetuando o mito. A morte precoce coroa os belos e talentosos com o elixir da juventude eterna. Teriam eles, então, se auto imolado para continuar no Olimpo?
Quando Marilyn Monroe se matou, eternizou-se o mito da conspiração para matá-la. Quando Michael Jackson morreu, as suspeitas recaíram sobre o médico que lhe prescrevia medicamentos. Também voltou à tona a infância difícil, com direitos a sopapos do pai durante os ensaios. Sobre Elvis, alguns afirmam que “não morreu”. Já Amy não morreu apenas. Já estava “morta” há muito tempo. Sentenciada tão precocemente que nos deixa árdua a missão de encontrar um culpado. Vão crucificar o pai, por ter assinado a autorização para liberá-la da clínica antes do tempo recomendado. Vão criticar para sempre o namorado bad boy que lhe apresentou as drogas. Vão diagnosticar que a fama era incompatível com sua personalidade. Vão dizer que a mídia a explorou. Não faltarão tentativas, mas todas elas murcham quando se constata que nós, meros mortais, somos deparados diariamente com situações parecidas. Nós, como os deuses loucos, também não temos pais perfeitos. Muita gente já teve um namorado canalhão. Experimentamos altos e baixos e gente que, não raramente, nos explora, a começar pelo governo.
Fica difícil encontrar mérito no desperdício do talento, porque todo talento é um presente. O que merece crédito e admiração é o que fazemos com ele. É preciso muita garra pra não se enterrar mais cedo que o previsto, com medo do futuro – coragem e sabedoria para envelhecer com dignidade e provar que se pode ser ainda mais feliz do que o mito. No fundo, todos nós queremos as duas coisas: sermos imitados e felizes. Nem sempre é possível, mas ser feliz já é suficiente para fazer anjos e deuses tremerem de inveja.
(Publicado no Jornal do Comércio, veículo de comunicação do Sincomercio Catanduva - http://www.sincomerciocatanduva.org.br/)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Será que não termos reis é assim tanta vantagem?

O casamento de Kate Middleton com o Príncipe William foi muito criticado por uma parcela menos deslumbrada dos britânicos, que achou um absurdo, em meio à crise, ter-se gasto tanto dinheiro com uma cerimônia daquelas. Alguns falam em 20 milhões de euros, somando-se o aparato de segurança montado para a ocasião.
Eu confesso que assisti ao casamento e sucumbi aos meus delírios pequeno burgueses, analisando com detalhes o vestido da noiva, a tiara linda de diamantes que reluzia. O casamento todo tão belo e tão milimetricamente organizado, a fofura da rainha, o orgulho de ser britânico, por parte dos britânicos, o ritual em si do casamento tão bonito e que apesar de toda a pompa ainda se podia sentir a paixão dos noivos.
Foi um espetáculo tão bonito que não me peguei pensando no dinheiro o tempo em que assistia, mas sim, o dinheiro há que se considerar.
Entretanto, em solo tupiniquim, ninguém se deu conta de que, em 2010, um político brasileiro, José Celso Gontijo, com esquemas de corrupção comprovados (foi pego pagando propina) gastou 10 milhões de reais no casamento da filha, conforme informações divulgadas pela revista Veja. Construiu um palacete inspirado no Palácio de Versalhes, onde a cerimônia aconteceu. E não há necessidade de explicar aqui os detalhes nababescos que devem ter rolado. O caro leitor pode imaginar. Pode imaginar inclusive a cafonice da ostentação (pois o primeiro casamento citado aqui no artigo ao menos era real de verdade). Agora esse negócio de fazer isso e aquilo inspirado no palácio da Maria Antonieta... Quando é que a nossa infeliz e fétida burguesia vai insistir nessa cafonice e parar de torrar nossos míseros reaizinhos de maneira tão frívola e corrupta, e ainda por cima tão ausente de criatividade e identidade típica de país colonizado?
Alguém protestou por aqui? Pelo jeito não. Se duvidar, até a revista Caras fez a sua coberturazinha (não averiguei).
Mas fica aqui o protesto até atrasado, mas ainda protesto.
No Brasil, não é difícil achar gente pra protestar pela liberação da maconha, pelo casamento dos gays ou até pelas vadias (pelo direito de continuarem sendo vadias, como se alguém estivesse impedindo). Mas como é difícil achar gente pra protestar por nossas prioridades menos individualistas, pelo que diz respeito a todos nós enquanto cidadãos e pelo que mais nos afeta, que é a roubalheira, os impostos que nos massacram, a tentativa de tolhar a liberdade de imprensa que pode piorar a nossa condição de arraial comandado pelo 'coroné'.
Tenho vergonha dos políticos que temos.
Antes ainda termos uma família real, mesmo que com metade do charme das famílias reais de Inglaterra, Mônaco, Suécia e etc, do que termos que sustentar mais de 300 famílias e de apadrinhados, que são os nossos políticos que estão em Brasília.
Eu ainda preferiria uma charmosa duquesa e seu colarzinho de pérolas a ter que ver a trupe de lula vexatoriamente vestida de caipira numa festa junina. Aparência de zé povinho, zé pobréu, quando a gente sabe que as moedinhas de ouro estão sendo é muito bem guardadas para as reais ocasiões. Zé Gontijo que nos diga.

terça-feira, 5 de julho de 2011

A cultura do calote

            A inadimplência aumenta a níveis galopantes. Dados informados pelo SCPC Catanduva revelam um aumento de quase 55% nas inclusões, de janeiro a abril deste ano, em comparação com o mesmo período do ano passado. Problemas como o aumento do custo de vida, doença e perda do emprego são alguns fatores que explicam, mas também é muito comum a falta de planejamento.
            Em passeios pelas pequenas propriedades rurais da região Sul, uma das paradas é na propriedade de um antigo produtor de fubá. O neto do primeiro dono, que recebe os turistas, conta detalhes da vida de seus avós imigrantes. Se a nona precisava de xícaras novas, o nono não ia até o banco tomar dinheiro emprestado. Primeiro plantava, depois vendia, e com o dinheiro recebido, depois de comprado tudo que era básico, as xícaras eram compradas.
Não dá pra retroceder. As compras a prazo são uma realidade e muitas vezes até compensadoras e o meio mais fácil que muitos têm para adquirir um bem necessário. Mas não é com bom senso que muitos estão entrando em parcelamentos infindáveis, em contas que não conseguem pagar.
            O mau exemplo vem de cima, do governo que privilegia Carnaval, Copa e Olimpíadas, em detrimento da básica trilogia “educação, saúde, segurança”. É bom investir na cultura, principalmente na que atrai turistas, mas é incompreensível se pensar na promoção de eventos desse porte quando não se tem o mínimo necessário para a população do país.
            Segundo Romário, pra Copa acontecer, “só Jesus Cristo”. E palavra de Romário num assunto desses costuma ter o mesmo peso de um diagnóstico da boca de um grande médico ou de um atestado de cafonice vindo de uma fashionista. Torcemos para que esse caso seja como o do meteorologista – quase nunca acerta.
Com a desculpa de eliminar a burocracia e agilizar, tentaram fazer com que os orçamentos para as obras da Copa permanecessem em caráter sigiloso, o que facilitaria fraudes. Felizmente, a Imprensa cumpriu seu papel e pressionou o governo, fazendo Dilma voltar atrás.
            Incompetência e corrupção são as causas de nosso retrocesso. São incontáveis os maus exemplos de quem, por estar justamente no papel de administrador de nossos impostos, deveria ser o exemplo. E a falta de palavra é um defeito que não escolhe conta bancária.
            Temos que nos mirar nos bons exemplos, atuais ou do passado. Um dos que mais gosto é o do Barão de Mauá. Desde a infância pobre já trabalhador, o jovem Irineu Evangelista de Souza não foi anjo, nem demônio. Foi um homem que sempre achou um privilégio aprender com quem sabia mais e dele tirar o conhecimento para aplicar mais tarde nos próprios negócios, o que fez dele o homem mais rico do Brasil, no século 19, mais rico do que o próprio Império.
            Irineu foi vencido pela política retrógrada, escravagista e dependente do capital estrangeiro, existente no país da época e que perdura até hoje. Após ter decretada sua falência, em 1878, vendeu bens no Brasil e no exterior, até mesmo a casa e objetos pessoais, passando a viver num palacete alugado, para pagar seus credores. Em seis anos, quitou seu último débito. Em 30 de janeiro de 1884, tendo ele já 70 anos de idade, foi pronunciada sua sentença de reabilitação comercial. Irineu, o Barão e Visconde de Mauá, estava com o nome limpo.
            Ele entendia o bem que faz um bom nome e não perdia a esperança de que poderia se levantar, afinal continuava o mesmo empreendedor de sempre. Se naquele momento estava em dificuldades, poderia se reerguer, desde que não perdesse sua integridade. Ele sabia que o ouro é sempre ouro, estando dentro do mais refinado porta-joias ou afundado num lamaçal. Alguém, um dia, vai revirar na lama e ter uma bela surpresa.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Cartão

Ia se preparando para trincar seu sanduíche de rúcula com ricota, enquanto lia o jornal, quando o telefone tocou. Era como a sirene do internato onde havia passado a infância e que sempre interrompia suas ralas refeições.
Era lerdo para comer desde os tempos em que só dava pra ter mortadela no recheio. Sempre achou que as refeições deveriam ser sorvidas languidamente, como os aristocratas e suas uvas.
Mas aquele telefone tocando, justo naquela hora, era inoportuno como uma jaca servida num brunch.
Após um dia cheio no trabalho, estava faminto e com saudades de sua solidão, mas foi atender, movido pelo mesmo condicionamento que estufa de sementes as bochechas dos hamsters.
- Boa tarde, é um imenso prazer falar com o senhor.
Tinha o tom falsamente insuportável dos apresentadores de programa de auditório. Tentava ser íntima e estupidamente simpática como nem sua tia Cotinha que o adorava e morava em Santa Gertrudes do Passa Oito costumava ser quando lhe telefonava.
Por frações de segundos pensou: “Quem essa fulana pensa que sou? O Brad Pitt?”. Não. Frente a pessoas famosas, as reações são inesperadas. Alguns perdem a fala, gaguejam, falam coisas idiotas, depois dão um sorrisinho amarelo e pedem desculpas pela idiotice. Aquele tom não era assim.
Era um tom de “eu sei o quanto você é idiota, e por isso estou te ligando enquanto você tenta comer o seu sanduíche de ricota”.
- Boa tarde, senho...
- Noite.
- Perdão?
- É boa noite. Você está me ligando às 19h58, praticamente oito da noite. Pelo menos é assim que dizemos no Brasil, a não ser que a senhora esteja na Ilha de Páscoa.
- Não estamos oferecendo nenhuma promoção de Páscoa, senhor. Trata-se da incrível promoção de Carnaval, da qual o senhor foi o estupendamente felizardo em poder participar, senhor Amado... Amado Cordeiro, não é isso?
- É Rocha. Amado Rocha.
Odiava seu último nome. Sempre lhe conferia uma imagem resignada. Por isso, quando lhe perguntavam, dava o nome do meio.
- Amado Rocha Cordeiro, entendo...
- Sim, é isso mesmo, podemos resolver isso logo, por favor? Eu quero voltar pro meu sanduíche e pro meu jornal.
- Hoje é o seu dia de sorte, senhor Amado Cordeiro.
- Rocha!
- Pois é isso. Senhor Amado Rocha Cordeiro. Eu só estou tentando apresentar ao senhor as nossas incríveis promoções do nosso Banco. O senhor não precisa ficar nervoso.
- Eu não estou nervoso, só estou tentando terminar o meu jantar.
- Eu compreendo, mas com o cartão de crédito que disponibilizaremos para o senhor, o senhor poderá comprar muito mais que um belo jantar, poderá pagar em até 90 dias, e depois de sete anos terá direito a um desconto de 5% no carro que o senhor escolher, desde que seja da marca Enka La Kradu, End Vidado ou De Volvo Tudo, ops Turbo! Turbo! Eu quis dizer Turbo! Desculpe a confusão, senhor Cordeiro.
- É Rocha!
- Não precisa se irritar, senhor Rocha. O senhor devia ficar feliz! Já que o senhor mora no bairro... Qual é o nome do bairro do senhor?
- Por quê?
- Senhor, eu preciso do nome do seu bairro para que isso conste no meu cadastro, o senhor compreende? Não precisa se irritar. Nós gostamos do senhor.
- Eu não estou irritado! E vocês gostam de mim por quê?
- O senhor pensa que não deviam gostar do senhor?
- Não...
- Não?
- Não foi isso que eu quis dizer. Está bem. Vamos logo com isso. Eu moro no bairro Presidente Ferdinando.
- Perdão?
- Presidente Ferdinando.
- Eu não entendo, senhor.
- Eu moro no bairro Presidente Ferdinando.
- Mas nunca existiu nenhum presidente com esse nome.
- Oras, mas o que a senhora quer que eu faça? Foi o nome que deram a este bairro e eu moro aqui. Quer que eu invente outro? Que me mude? Que vá às ruas protestar? Que pinte a cara contra o Presidente Ferdinando que nunca existiu?
- Eu disse isso, senhor?
- Não.
- Eu apenas perguntei o nome do seu bairro e colaborei com uma informação histórica. Não entendo a razão de tanta irritação.
- Mas eu não estou irritado.
- O senhor tem certeza?
- TENHO.
- Está vendo? O senhor já se irritou.
- Está bem. Desculpe. Eu não estou irritado. Por favor, acredite.
- Ok, então eu espero que possamos terminar esta conversa civilizadamente, já que o senhor é muito importante para nós. Qual o nome da rua e número de sua residência?
- Pra quê?
- Pra que enviemos o cartão de crédito para o senhor.
- Mas eu não pedi nenhum cartão de crédito.
- Sim, claro que o senhor não pediu. Nós é que estamos dando, porque o senhor foi o incrível selecionado para a nossa promoção de Carnaval. Seu endereço, por favor?
- Eu não quero te dar meu endereço.
- O senhor está dificultando as coisas. Como é que eu posso mandar o cartão se o senhor não me der o endereço?
- Pois não mande.
- De maneira alguma. O senhor é muito querido para nós. Procuraremos na lista. Vejamos aqui... Cordeiro, Cordeiro...
- É Rocha!
- Senhor, seu último nome é Cordeiro. Eu não posso achar seu endereço se eu procurar por Rocha.
- Pois não mande! Eu não quero cartão de crédito algum. E eu não quero que o meu bairro mude de nome.
- Entretanto o senhor quer mudar o seu nome...
- Eu não quero mudar. Apenas prefiro que me chamem de Rocha. Eu não gosto de Cordeiro.
- O senhor é anti-semita?
- O quê?
- Anti-semita. Tem algum preconceito contra os judeus?
- Mas o que isso tem a ver?
- Eles comem cordeiro.
- Sim, comem, mas...
- Gostaria de informá-lo de que esta conversa está sendo gravada e que este conteúdo discriminatório será relatado às autoridades.
- Pelo amor de Deus, eu não sou nazista.
- Mas o senhor não quer o cartão de crédito que eu estou oferecendo e os principais acionistas deste Banco são judeus.
- Eu não sabia.
- O senhor não estava lendo o jornal?
- Sim.
- O senhor lê o caderno econômico?
- Sim.
- Assim fica difícil acreditar que o senhor não sabia...
- Desculpe, talvez não leia assim com tanta freqüência. É que eu ando meio confuso. Às vezes quando digo sim, quero dizer não. E quando não, é sim.
- Entendi perfeitamente. Isso quer dizer então que podemos enviar o cartão.
- Eu não disse isso.
- Mas o senhor acabou de dizer que quando diz uma coisa quer dizer outra. Assim fica difícil ajudar, senhor Rocha.
- É CORDEIRO!
- Como é?
- Ah! Você acertou! Sim, é Rocha!
- Está vendo? O senhor não sabe o que diz. Estamos encaminhando para o senhor o nosso cartão de crédito, combinado, senhor Rocha? Senhor Rocha? Senhor Rocha, o senhor está me escutando?
Foi achado dias depois, dependurado com os pés ao ar. No pescoço, o fio do telefone. Na escrivaninha, um bilhete: “Morro enforcado, tendo jamais me enforcado no cartão de crédito”. Na caixinha do correio, o cartão de crédito.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Felicidade

Perguntam-me se acredito em felicidade, como se fosse possível a luz conviver com as trevas, o vazio com o cheio, os altos e baixos. Afinal não é isso que a vida é? Altos e baixos. Acredito na alegria e no bom. Tudo que é bom é necessariamente real, sem ter que obrigatoriamente ser feliz, assim como nem tudo que faz alguém feliz tem que ser bom.
Felicidade em estado puro e absoluto é a energia de um plano elevado de existência, onde a morte, nas suas mais variadas formas, jamais triunfa. A morte do corpo, a morte da alma, a morte da inocência, da esperança, da compaixão.
Viver esta única vida que conheço é a eterna carência. Apenas os mortos não tem mais para o que lutar. Enquanto estamos vivos, nunca estamos contentes, porque nossas alegrias têm prazo de validade, como a fome, a sede e as coisas todas que precisam ser limpas, porque precisam ser sujas, e depois limpas, sujas, limpas.
Precisamos do contraste, porque só assim nossas conquistas terão significado. Se fôssemos permanentemente felizes, blindados contra qualquer sorte de infelicidade, a felicidade, contraditoriamente, não existiria, ou não queimaríamos nossos neurônios sequer para lhe chamar pelo nome. Como o ar que respiramos. Só vamos nos lembrar dele quando o perdemos. Mas o que é bom é sempre bom. Será sempre nobre, evoluído, altruísta, como o amor.
Dizem que temos de encontrar alguém que nos faça felizes, como se isso fosse possível. Amar não se pede e também não se deixa de amar porque se quer. O amor nos faz mais infelizes que felizes, porque amar é dar razão a quem não tem e continuar amando quando não mais se tem.

A revolta anti-feminista

       
            Eu já estou entrando no Renew, mas não vivi essa época, que fique bem claro. Quando li as primeiras reportagens sobre a história da emancipação feminina, lá pelos meus oito anos, as fotos em preto e branco da mulherada queimando sutiã estavam ao lado dos comentários da novela Selva de Pedra. E no Brasil dá pra contar o tempo assim: por nome de novela e pacote econômico, com a diferença de que uma acaba bem e o outro... Anyway, se os sutiãs da época não fossem tão mocorongos, ia achar um desperdício. Que venham os push-ups, corselets, corsets... santa tecnologia têxtil! Se as mulheres podiam ser adoráveis como a Marilyn de Gentlemen prefer blondies, porque raios elas queriam se parecer com uma arqueóloga que prefere dar seus fósseis pro cachorro brincar a usar um batom?
            Sempre achei lindo quando as mulheres gostam de ser mulherzinhas e quando os homens as tratam como tal. Gosto quando as mulheres se sentem seguras pra ser atraentes, sem achar que o fato de se cuidarem as torna fúteis ou menos inteligentes. É poderoso ser esperta sem achar que tem que provar isso pra alguém. As mulheres de antigamente podiam entender menos de gráficos e prazos, mas eram mais protegidas e protegiam mais.
Sinto um cheiro de lavanda no ar, quando me lembro da minha avó, que nunca teve carteira assinada, cuidando feliz das flores do quintal, colhendo as couves de sua hortinha e preparando uma comida cheirosa 100% orgânica, aquela que a gente paga mais caro no supermercado se não quer comer uma salada temperada com agrotóxico.
Lembro da minha mãe trocando receitas com minhas tias. Como fadinhas encantadas, lá pelas cinco da tarde faziam jorrar de seus fornos os resultados de verdadeiras poções mágicas.
A vida tinha sabor de queijo e goiabada derretidos, num tempo em que ninguém tinha que passar por um treinamento espartano na academia pra ter pernas de jogador de futebol. Que o diga Marta Rocha e suas polegadas a mais. De bônus, suas conterrâneas ainda ganhavam bombons. Era o jardim das delícias. Hoje em dia os homens não cometem essa ousadia. Não sabem se vão ser vítimas de um ataque histérico, acusados de estarem arruinando uma dieta. Pecado imperdoável contra elas, as super mulheres, que acordam às 6 da manhã, com vontade de socar o despertador, trabalham o dia inteiro fora de casa, continuam trabalhando quando chegam a casa e ainda tem que arrumar tempo pra ficar bonita e sexy. Bombom? Sem chance.
Ficar na cama serpenteando as pernas languidamente entre lençóis brancos é coisa pras contemporâneas de Audrey Hepburn, numa época em que se podia tomar um breakfast at Tiffany’s sossegadamente. Hoje nem se quisermos podemos ficar em casa, pois as mulheres já invadiram o mercado de trabalho. Com mais gente competindo, o salário deles diminuiu e agora precisa do nosso. “E aí, meu bem, vamos rachar a conta?” Que romântico... Garanto que foi a frase que o Humphrey Bogart disse pra Ingrid Bergman em Casablanca, logo depois do: “Sempre teremos Paris”. Também tenho a certeza que se fosse hoje o Jack do Titanic ia morrer com 90 anos. Ele teria empurrado a Rose daquele pedaço de madeira que ficou boiando e salvo a pele dele. “Sai, colega. Você é bonitinha, but I’m the king of the world”.
A gente quer homens à moda antiga, que abram a porta do carro pra gente entrar, que gostem de fazer surpresa, que mandem flores e até arrisquem escrever um poema, ainda que seja o mais boçal do mundo, de fazer Carlos Drummond de Andrade se revirar na tumba de vergonha. Não existe nada mais bonito que um poema ruim, quando verdadeiro.