segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Aquele sábado



Quartas-feiras deveriam ser dias frugais como cardigãs em tom de pêssego. O luto da segunda-feira já teria deixado a fase da negação e adentrado a fase da aceitação. Por outro lado, a euforia do final de semana ainda não teria motivos para se instalar. Apenas a rotina pálida, de sorrisos permitidos e respiração pausada.

Já os sábados, estes sim, deveriam sempre corresponder à expectativa das sextas, tal como as mães detestam frustrar os filhos em vésperas de Natal e Dia das Crianças. Sábados deveriam ser animados ao som de mil vozes gritando “vambora!”. Deveria ser lei. Todos os sábados tinham que ser ensolarados em dias de praia e com garoa paulistana em dia de cineminha em casa. Tempestades tortuosas deviam ser reduzidas a mera ficção científica.

Nas sextas-feiras – e eu já falei delas – devíamos ter direito a dormir o sono das ninfas, o sono das despreocupações, apimentado ligeiramente por uma ansiedade saudável, de quem mal pode esperar pelas alegrias que ‘ele’ trará. Ele, o distinto senhor sábado.
Tragédias deveriam ser expressamente proibidas de acontecer, de qualquer forma, mas ainda mais, quando se tem 30 anos e se está no auge da vida. Quando você pensa que tua vida já assumiu o caminho que escolheu e embala numa velocidade interessante para em breve já lhe trazer os frutos. Deveria ser punido com o exílio irreparável quem inventou as tragédias que vitimam pessoas inocentes, de coração puro e brilho no olhar. E mais: as pessoas que são tão amadas e causarão tanto sofrimento com sua ausência.
Deveriam ser crime tragédias que vitimam pessoas belas, jovens, talentosas, amorosas e saudáveis (e não quero ser fascista em relação a isso, tampouco me preocupo com os juízos de valor que possam fazer de mim enquanto escrevo isto), mas talvez sejamos mesmo mais greco-romanos do que sonhamos e os belos quando morrem... Ah... os belos... é como passar um rolo compressor num jardim de acácias ou demolir a Capela Sistina. Deveria ser alvo de punição uma tragédia acontecer na véspera de uma viagem, às barbas de fevereiro e num país como o Brasil!

Deveria ser proibido morrer quando existe outro alguém que ama tanto que este amor seria suficiente pra durar por toda a eternidade e nada nem ninguém nunca iria separá-los. Num mundo onde tantos não conseguem se entender... sim, separar um amor verdadeiro deveria ser proibido. Um amor tão grande que, solitária, como os pombos, não se importaria de morrer também e o faria se isso não traísse o próprio sentimento tão contraditório que é este amor.

Finalmente, e se não fosse mesmo possível evitar a morte, deveria haver lapso de humanidade com poder tal a não permitir que morressem longe da gente. Deveriam morrer afofados nos nossos braços, sentindo o bater do nosso coração a lhes dizer: “Estou aqui, te amo e sempre te amarei até te encontrar de novo do outro lado, não tenha medo”. Assim, do jeitinho que vemos nos filmes de Hollywood e do jeito que 99,9% das pessoas não vão morrer – sejamos realistas! É, eu sei... a verdade dói. Não existe nada de nobre ou elevado em corredores frios de hospital, com enfermeiros meramente fazendo o seu trabalho e tubos entrando aqui e ali, até você ser gentilmente convidada a se retirar e deixar seu amor ali, numa sala fria e no meio de pessoas que ele não conhece.

A verdade é a mesma que se encarrega de transformar segundas-feiras em algo de extraordinário. Elizabeth Taylor recebeu uma das peças de sua coleção, um conjunto de colar e brincos de diamantes da Cartier numa tranquila tarde de terça-feira à beira da piscina. E ali, molhada e de biquini mesmo, as experimentou, como quem compra uma canga nova em Boiçucanga. Morreu com 79 anos, numa frugal... quarta-feira.

Há quartas-feiras perplexas, sextas-feiras agonizantes e sábados com cheiro de morte, zunido de UTI de hospital, o irritante barulho de geladeira velha, e odor de crisântemos. Eu adorava o perfume dele, ele não cheirava assim. E tudo o que você sente é revolta. É desumano, ele não deveria estar assim! E o beijo? Eu o beijo, tentando encontrar resquícios do meu amor, do cabelo onde eu deslizava meus dedos, orgulhosa da beleza dele e de quem ele era. Da mão que me segurava com firmeza, do sorriso que me derretia e do olhar que me acalmava e protegia.

Fazer o quê? Há sábados assim, como os de hoje, 28 de janeiro de 2012, que lembram de outro sábado, o de 28 de janeiro de 2006. São sábados tristes, mas diferentes, porque o tempo os separa. O tempo jogou pra longe a loucura paralisante, o desespero, e até a falta de esperanças. Porque eu e você somos filhos do mesmo Deus, que renova as nossas forças e as nossas esperanças e nos leva a outros vales de rios revigorantes, pra nos restabelecer até o fim dos tempos.

Os dias em que vivemos juntos vão ficando pálidos, conforme eu me afasto nesta estrada chamada tempo e às vezes, para mim, chegam a parecer uma outra vida, um tempo em que eu não tive direito de viver, uma ilusão, uma perda de tempo, um sonho, algo irreal que eu não percebia que devia ser um conto de fadas e agora sim é a vida real.

E peixe como sou, algo que me debulha em lágrimas depois me esfria como uma brisa finlandesa até quase parecer que não sinto mais. Ando oito passos, volto dois. Ando mais 14 passos, retorno três. O resto eu não sei. É preciso saber? Desisti de entender. As coisas são como são. É bom que no caminho encontre quem me dê a mão e tenha flores para arrancar.

É bom tentar me fazer forte para encarar não apenas a dor, mas a hipocrisia das pessoas, que no funeral me diziam “você tem que seguir com a tua vida” e agora me olham com olhares de lobo se me sinto feliz ou refaço minha vida, como se isso fosse digno de reprovação e de falta de sentimentos. Descobri, com isso, que, para a maioria das pessoas, uma tragédia nunca é o bastante. Há sempre um meio de fazê-la mais estarrecedora. Há sempre uma maneira de sentar no Coliseu e assistir lá embaixo, na arena, a dor alheia agonizante e paralisante, até se transformar numa enorme poça de sangue. Parece exagero, mas ainda continuamos a ambiciosa, egoísta e falsa sociedade romana. A raça de víboras que crucificou Jesus Cristo. A nobreza que faz caridade pra se aparecer. As mulheres e homens bons com seus ternos Armani, óculos Prada e bolsas Victor Hugo, que no sorver de seu creme brullé destilam veneno ao narrar as tragédias alheias. Como cavalos de raça que se apressam pelo primeiro lugar no pódio, querem ser sempre as primeiras a contar, argumentando, é claro, o quão consternadas estão. E passe-me a calda de cerejas, por favor!

Não que ele não mereça. Ele é digno de toda a honra e de que mantenhamos sua memória viva, até que nasçamos para a vida após esta vida. Mas hoje, que me desculpem, seus amigos que o amaram sinceramente, e ele mesmo, meu amor, mas não postarei foto dele, como o fiz nos dias anteriores, quando este triste dia se aproximava. Escrever sempre é uma catarse, mas hoje não tenho forças e não quero vê-lo. Eu o verei outro dia. E todos os que o amaram verão. Hoje deixo aqui uma obra dele, uma visão que ele teve. E talvez, quem tiver tecnologia necessária, se é que isso já existe, poderá vislumbrar seu rosto no reflexo dos meus olhos.

E já ia me esquecendo... Claro: um bom final de semana a todos. Esforcem-se e sejam alegres. Que Deus nos proteja, nos dê sua paz e encha nossas vidas de regozijo.