quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Cordel de vida e de morte

Nasceu no hospital, aconchegado por bordados e pantufas
Morreu inconformado, engasgado por uma trufa

Nasceu ao léu, sem eira nem beira
Morreu desfigurado, surpreendido na trincheira

Nasceu de manhã, prematuro, de cesariana
Morreu à noite, deitado, na cama

Nasceu parido de cócoras, na beira do rio
Morreu afogado numa banheira de Beverly Hills

Nasceu dourado, amamentado por fadas
Morreu espancado, e os assassinos vestiam fardas

Nasceu defecado, no mato, um coitado
Morreu sentido, por todos amado

Nasceu indesejado e foi abandonado
Morreu diante da multidão, pela plateia ovacionado

Nasceu diante das câmeras, tecnológico à beça
Morreu dando banho no elefante que lhe sentou na cabeça

Nasceu demorado, sofrido temporão
Morreu num lampejo, de desastre de avião

Nasceu de parto normal, tranquilo e sem demora
Morreu depois de meses doente e sem querer ir embora

Nasceu amparado, sonhado, embalado
Morreu esbugalhado, sozinho, dopado

Nasceu no interior de uma caverna, no meio de um ritual
Morreu num palacete, ao som de um belo coral

Nasceu em meio a uma aventura, quando os pais escalavam os Andes
Morreu porque tropeçou e caiu, e já o haviam aconselhado “não andes”

Nasceu na lata do lixo, sem ninguém pra chamar de seu
Morreu enforcada pela echarpe Dior que enroscou no pneu

Nasceu em clima romântico, numa construção antiga de Roma
Morreu entubado, no ar condicionado, em coma

Nasceu quando a família preparava um barulhento churrasco
Morreu quando tentava arrancar uma flor de um penhasco

Nasceu forçado
Morreu matado

Nasceu chorando
Morreu de tanto rir

Nasceu em berço de ouro
Morreu devendo pra todo mundo

Nasceu já devendo
Morreu doando

Desiguais na vida
Desiguais na morte
Morte e vida
Vida ou morte
Nenhuma delas sentencia
De uma ponta ou da outra
A própria sorte

Mas o meio

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