quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre cortes e membranas

Existe algo de enigmático na superfície e algo que me inquieta sob a derme. Eu me descuido e a folha do papel sulfite corta meu dedo, como há muito eu não fazia. São 11h29 de um dia 8 de março.
Pensamentos são interrompidos por afazeres menores de grande importância, o tipo da causa urgente que no último suspiro não representará lampejo de memória. Lembro-me desse futuro porque o corte grita, do alto de sua insignificância. Passam agora 12 minutos das escancaradas duas horas da tarde.
E concluo agora, neste exato momento que nunca mais será igual a qualquer outro, que os olhos não tem cores absolutas. Não existem somente olhos castanhos, verdes e azuis. E nem o hazel do inglês é suficiente para explicar todas as nuances. E ainda que sejam negros – não subestime os negros – eles também não são todos iguais. Há cores, formas, brilhos e vibrações por trás daquelas membranas óticas. Possibilidades tão sem fim que as correntes nervosas paparazzi do nosso cérebro não são capazes de reportar. É preciso ir fundo, bem fundo na derme, romper a couraça da carne para além dos vasos capilares e descobrir, de citoplasma em citoplasma, pegando carona nessas balsas microscópicas, qual delas nos mostra o túnel que dá acesso à alma. Esta bela, doce e misteriosa desconhecida.
Porque há certos olhos azuis. Certos olhos azuis que observavam com doçura e se indignavam com um corte provocado por uma folha sulfite. “Que pele fina”, pensava. “Ela corta com folha sulfite a ponta de seus dedos, as laterais finas como uma massa pat à choux”. E sorria. E as sombrancelhas criavam um ângulo de singela preocupação. E a pele do rosto enrugava pelo sorriso, na pele branca veneziana, formando rococós barrocos como moldura para aqueles olhos que falavam na língua do brilho.
Pensamentos como este têm vida própria. Combino suas moléculas cuidadosamente no lodo de ideias. E agora imagino outros dois olhos azuis. Desta vez são olhos polacos de amiga.
A polaca também era amiga dos papéis e algumas vezes a celulose também lhe cortou a pele de porcelana. E ela experimentou a sensação onipresente de um corte quase invisível. Que ninguém vê, só os mais sensíveis. Que fica ali latejando, desafiando a forma patética com que foi criado.
O que não nos mata nos fortalece. E a polaca dissolveu seus potes de confusão numa infusão de ervas libertadoras. Pegou sua caneta dourada e com ela aprendeu a escrever novos capítulos em sua história, com cheiro de flor.
Ela caminha com cuidado. Tem medo de ferir e ser ferida. Não tem pressa pra decidir, mas quando tem certeza, nada  é capaz de lhe impedir. É como a força da gota d’água, delicada, no desenho da rocha desenhada, quando ela anda de braços dados com o tempo, como aliado. Meus olhos são escuros, mas tem algo de polaco, pois dentro deles desfruto da mesma tonalidade de alma.
Sabemos que podemos mudar. É fácil e cruel demais deixar a vida decidir por si própria, deixando que as tragédias se abatam sobre nós.
Mas, como aqueles olhos que já se foram, sabemos a hora certa de não decidir. A hora certa de simplesmente partir e de sequer nos sonhos aparecer. Sumir sem deixar pistas. Assim como aqueles olhos azuis.
Agora noto que a pele se regenera formando uma linha levemente áspera por onde o papel fincou. “Ela corta os dedos no papel sulfite...” E ele sorria gostoso, cheio de amor. ‘As palavras ecoam por todo o sempre’, penso agora.
Passam 37 minutos das duas horas da tarde. Tenho fome. Vou ingerir proteínas e carboidratos que conferirão ao meu corpo capacidade ímpar de deixar este corte irreversivelmente no passado. A fome simplifica. A fome animaliza, minimiza e distrai. Porque é depois da comida que vem a busca. Só depois de dar uma satisfação ao estômago agonizamos nas questões elevadas. E me lembrarei que alguém, um dia, pegou delicadamente em minhas mãos e observou, como se isso fosse uma virtude das deusas, que eu tinha a capacidade sílfide de cortar meus dedos em folhas sulfite.

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