segunda-feira, 20 de agosto de 2012

As crianças e o Reino dos Céus



“Aquele que não se fizer como uma criança não herdará o Reino dos Céus”. As palavras de Jesus ecoam em minha mente, como num som de trovão com direito a efeitos de iluminação entre abertura de nuvens.
Olho para a TV e o que vejo? O desenho do Pokemón. Ao meu lado, e disputando seu lugar no sofá como uma visita inconveniente, mais sete adultos. Notadamente aborrecidos, tentam iniciar um diálogo qualquer. A crise mundial, o mensalão, o assassinato da juíza, o final da novela, o clima. Logo desistem, porque ninguém se escuta. Ao centro, jogado no tapete da sala como um sultão de bermudas, o menino de apenas seis anos faz do controle remoto o seu cetro.
- Fala mais baixo todo mundo aê! Eu tô assistindo! Humph! – e infla as bochechas como um trompetista pronto a soprar a nota final – Que saco, viu!
Suspiro. Será que devo ser aquilo para herdar o Reino dos Céus? Deixe ver... A partir de amanhã não respeito fila nenhuma, sento no assento de deficiente e levo meus amigos vegetarianos pra almoçarem numa churrascaria.
Peço desculpas aos parentes. Digo que estou ocupadíssima, cheia de trabalho pra entregar e que não posso ficar mais e...  Não sou ouvida. O menino sai em disparada e tira o pai do notebook.
- Papai precisa mandar um e-mail. É importante.
- Saiiiiiiiiiiiiiiiii. Quero jogar meu joguinho, depois você usa.
O pai dá um sorriso amarelo, já visivelmente destronado e faz o gênero “gerei um mini gênio”.
- Essas crianças de hoje em dia são muito espertas. Ele sabe até a minha senha! Entende tudo de computador... às vezes até me ajuda! Por isso tem que incentivar, né. Estou em falta. Era pra ter já comprado seu notebook, mas me enrolei com as prestações do celular de R$ 600 que ele pediu.
- Olha só... – faço cara de espanto, como se o filho deles fosse o único a saber ligar um computador e me lembro de que eu nunca fui promovida a Einstein mesmo tocando Mozart, Chopin e Beethoven com 10 anos de idade. Naquele tempo a gente era apenas... alguém que estuda e como consequência aprende. Normalíssimo. “E se não aprender, se não virar nada, te tiro do curso, que é caro, por isso decida se é isso mesmo que você quer”.
Chegava o dia do recital. Palmas e parabéns, mas também considerações: “na primeira música, você tropeçou, precisa estudar mais. A segunda você tocou muito bem”. Enfim, naquele tempo dava pra acreditar em elogio. Nossos pais não ficavam se acotovelando e pisando no pé dos outros pra filmar o filho interpretar o dificílimo personagem “Sol”, no premiadíssimo espetáculo “Primavera”, que consiste em um no meio do palco com uma cartolina amarela em volta da cara, mais cinco em volta com uma cartolina em forma de flor em volta da cara. E todas as crianças no palco com cara de terror olhando o desespero dos pais atravessando a frente de quem fosse em busca do melhor ângulo. Porque “tem que estimular a auto-estima das crianças”. Quase ninguém se preocupa com as distorções de realidade e as frustrações futuras do seu ‘reizinho’, quando ele perceber que o namorado, o chefe, o guarda de trânsito ou a polícia não são o pai e a mãe dele e não acham “lindo” tudo que ele faz.
Nossos pais também não iam brigar com a professora porque o personagem principal não foi do filho deles. Se a gente reclamasse, corria o risco de ouvir: “A professora é que sabe. Estude mais e mostre mais empenho. Quem sabe da próxima vez você é o escolhido”. E crescíamos sem traumas. Sem crise.
Voltando ao átrio do mini Faraó. Quero ir embora. Voltar ao mundo dos adultos. Os pais do pequeno príncipe sem raposa pra puxar pelo rabo insistem pra eu ficar mais um pouquinho, perguntam que tanto trabalho é esse, o que eu ando fazendo, além de não colaborar para agravar o inchaço populacional do Planeta Terra.
- Então... quando teremos um amiguinho pro Rafinha brincar?
- É... tentador, mas no mundo de hoje...
Mal abri minha boca pra responder, de súbito meus interlocutores parecem mais interessados no hemisfério sul. Explico: somos interrompidos por um puxão na barra da blusa, que vem lá de baixo, do nosso fofo pigmeu.
- Mãe, quero comer biscoito!
- Mas filho, você vai jantar daqui a pouco. O biscoito vai estragar sua janta.
- EU QUERO BISCOITO, EU QUERO BISCOITO, EU QUERO BISCOITO!
Lá fico eu de novo com cara de tacho, feito uma coluna do templo, esperando o desfecho dessa emergência inadiável, reivindicação importantíssima para a humanidade: a aprovação do projeto do biscoito. Um dos temas da próxima conferência do G20. “Mudanças nas relações comerciais com os países em desenvolvimento e... os biscoitos do Rafinha”.
- Pera só um pouquinho... – diz a mãe – para mim, que fique claro – enquanto vai até a cozinha, fingindo que manda alguma coisa – Só dois, hein?
O menino arranca o pacote de biscoitos da mão da mãe, como se não comesse há 40 dias e 40 noites no deserto de Gobi. Não fosse as bochechas coradas, alguém poderia chamar o Conselho Tutelar.
Finalmente, em meio às divergências de posse do biscoito, obtenho lapso de atenção suficiente para me despedir apropriadamente e tomo o rumo de casa. A primeira impressão que tenho ao cruzar o portão é o silêncio, apesar do ônibus que passa buzinando, do carro com som no último tocando funk, da madeireira em frente e da broca da Prefeitura quebrando o asfalto. Não ouço mais a voz ardida do pequeno ditador, nem a trilha sonora dos Cavaleiros do Zodíaco. A paz reina.
No caminho de volta para casa, algumas frases dos meus pais dos meus tempos de criança me vêm à mente:
- Já são nove horas. Todo mundo pra cama.
- No Natal ou no Dia das Crianças eu te dou, mas vamos ver nossas condições... – e nada de presente a cada vez que se vai ao supermercado.
- Quando chegar à casa do fulano, comporte-se e não mexa em nada.
- Silêncio agora que a mamãe tá conversando.
- Não aponta pra ninguém na rua, que é feio.
- Pare de encarar as pessoas na rua, que é falta de educação.
- Oferece pro moço.
- Divide com o coleguinha, senão não te dou mais.
- Agradece o tio.
Confesso que entre minhas antigas memórias e os mais recentes acontecimentos tenho dificuldades para entender como pode ser das crianças o Reino dos Céus. Até porque nem nos anos 60 ou 70 éramos santos. Nem na corte de Versalhes, nem na varanda dos amish menonitas, nem na tribo dos tupinambás. Nunca vi crianças como anjos. Para mim sempre foram apenas seres humanos em miniatura. Como anões, só que com a cabeça menor.
Quando lecionava, cheguei a ver crianças que colocavam o pé na frente do coleguinha só pelo prazer de vê-lo se esborrachar. Ao serem confrontados, mantinham a feição cândida dos anjinhos barrocos, mesmo com todos os dedinhos das demais crianças da classe apontando pra eles enquanto repetiam em coro: “Foi ele, sim, tia, foi! Todo mundo viu! A gente não aguenta mais! Ele bate em todo mundo!”. Praticamente a população de um país do Oriente Médio ou Norte da África clamando Justiça à comunidade internacional. “Tirem esse déspota daqui!”.
Havia também crianças de cinco anos que socavam a cabeça dos mais indefesos contra a parede. Crianças saudáveis, de famílias distintas, bem amadas e frequentadoras das mais renomadas instituições educacionais. Outras, como potros selvagens, mordiam crianças, progenitores e diretores. Em suma, tudo que se movesse. Outros, mais incautos, e menos dados à selvageria, apenas se alegravam soberbamente com a punição do semelhante. Punição esta por vezes acelerada pela denúncia escancarada: “Foi ele, eu vi! Manda pra fora! Conta tudo pra mãe dele! Não deixa ir ao parque! Dá zero pra ele! Crucifica! Crucifica! Crucifica!”. Oh, Jesus, que será do teu Reino?
Hitler já foi criança. Bin Laden não nasceu com aquela barba. Assassinos, traficantes, ladrões, mentirosos contumazes... todos já foram crianças. E mesmo os que hoje assinam seus cheques como cidadãos respeitáveis e até os que se destacam na cidade como pilares da moral e dos bons costumes ou como exemplos de vida no voluntariado, quando crianças, atormentavam a vida de coleguinhas mais feios, mais gordos, mais magros, mais bobos. Como pode ser das crianças o Reino dos Céus?
Crianças não são anjos, nem demônios. São mais puras e inocentes porque não viveram o suficiente para fazerem suas escolhas. Crianças são uma tela em branco, testando a tudo e a todos, perguntando tudo pra todo mundo e se achando o centro do universo. Devemos então ser egocêntricos para herdar o Reino dos Céus?
Já começava a me incomodar com a minha confusão, mas de repente, como uma peteca na cabeça, me vem a resposta. Dependência! Crianças são totalmente dependentes. Acreditam nos pais e deles esperam tudo. Simbolizam a fé que Deus espera de nós e não a auto-suficiência. Dependência como a de uma criança, que caminha tranquila de mãos dadas com o pai, ainda que esteja caminhando pelo corredor da morte, porque ao lado de seu ‘herói’ nada mal pode lhe acontecer. Quem assistiu ao filme “A vida é bela” sabe bem o que isso significa.
As crianças dependem dos mais velhos para receber tudo de que necessitam para se tornarem adultos responsáveis. Carinho, amor, alimentação, educação. Não só a que se aprende na escola. Elas dependem de nós para que não se transformem em pequenos tiranos. Para que não sejam, no futuro, imperadores de um reino em ruínas. Para que sejam, mesmo adultos, as crianças que Jesus espera que sejamos. Humildes dependentes do Altíssimo. Inquilinos eternos do Reino dos Céus.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

50 anos sem Marilyn e a crise do cinema

Marilyn Monroe, a Cleópatra moderna, o mito mais poderoso do século 20. Meio século após sua morte - morreu num dia 4 de agosto de 1962 – Marilyn continua sendo considerada uma das atrizes mais sensuais que já existiu. Indisciplinada e complicada, tida como irresponsável e incapaz de ser pontual. “Ela chega atrasada, sim, mas eu tenho uma tia que sempre chega na hora, mas ninguém gostaria de vê-la numa tela", defendeu-a Billy Wilder, que a dirigiu em “Quanto mais quente melhor”.
A falsa loira, que dizia que era preciso a esperteza de uma morena pra ser uma loira fatal, conquistou a maioria das vezes os papéis de loira burra e sua fama de sex symbol ofuscou tudo que realmente era: uma mulher que sabia potencializar seus atributos como ninguém, com segredos de maquiagem e de estilo de se vestir até hoje copiados, e que desejava ser muito mais. Estudava, tinha aulas de canto, dança e teatro. Queria se superar e conseguia.
Dona de uma voz inconfundível, interpretava dentro e fora das telas. Isso a transformou num personagem em tempo integral e a prova de que, sem dúvida, era uma grande atriz, pois a personagem não era a Lorelei de “Os homens preferem as loiras” ou a Pegg de “Só a mulher peca”. O grande personagem de Marilyn sempre foi a ela mesma. Um talento inato. “Dirigir Marilyn Monroe é como dirigir Lassie”, disseram. A atriz colocada no panteão das deusas era ao mesmo tempo ridicularizada e subestimada. Por trás de seus corsets apertados, litros de tinta de cabelo e maquiagem, numa manhã decaída, quando detestava ser surpreendida, ficaria evidente que não era tão bonita assim. Mas ela acreditava que toda mulher deveria ser chamada de linda, desde a infância, ainda que não fosse. Por outro lado, sua insegurança vinha do fato de que apesar do talento que demonstrava, parecia nunca atingir o respeito e prestígio de suas contemporâneas Katherine Hepburn e Betty Davis. “Não me faça parecer uma brincadeira”, suplicou ela ao repórter a quem concedeu a última entrevista antes de morrer.
Podemos dizer tanto sobre Marilyn e ao mesmo tempo tão pouco. Sabemos que nunca soube quem foi seu verdadeiro pai. Que viveu em orfanatos após a mãe ser internada num hospício. Que se casou muito jovem para não ter de voltar ao orfanato e que se divorciou pouco tempo depois porque o marido exigiu que escolhesse entre ele e a carreira. Sabe-se que gostava de crianças, mas nunca teve filhos. Sua morte é cercada por uma névoa de mistério: suicídio ou assassinato? Provavelmente nem uma coisa nem outra. Devia estar triste e exagerou na dose, misturando remédio demais com bebida, sendo insana e intensa como a Marilyn de sempre. Não parecia das mais sensatas, mas também não deu indícios tão fortes de que queria morrer. Acusar os Kennedy's de assassinato me parece mais uma tentativa desesperada de explorar o mito. Mas não vou direcionar o artigo para esta arena polêmica e tão parca de glamour. Prefiro tentar imaginar o que Marilyn queria realmente e o que era de verdade. Ela sempre dizia que não ligava a dinheiro, só queria ser maravilhosa. Mas, com 37 anos e a proximidade dos 40, talvez a solidão lhe tenha batido à porta, gerando em seu âmago crises existenciais aterradoras. O que a maior diva de todos os tempos poderia querer mais? Ser a mulher do presidente do país mais poderoso do mundo. Mas não pôde. Ser mulher, aliás, era o que lhe interessava. Dizia que não lhe importava viver num mundo de homens, desde que neste mundo lhe fosse permitido ser mulher.
Mas que mulher? O humor de Marilyn era uma gangorra. Alguns lhe rotulam de egoísta e nada profissional. Outras, em sua defesa, dizem que Marilyn era apenas uma mulher frágil. O mais correto a se dizer sobre Marilyn é seu mistério. Seria ela tão frágil quanto sugeria sua voz de miado de gata? Uma mulher assim tão vulnerável teria saído do nada e conseguido a proeza de fazer seu primeiro filme com 21 anos, tornando-se a atriz mais poderosa de Hollywood com apenas 27 anos de idade? Difícil de acreditar. Seria sua fragilidade aparente também parte de seu personagem? Será que ela sabia o tempo todo o que estava fazendo quando todo mundo pensava que ela não sabia o que fazia? Acredito que sim, mas o mistério continua. E talvez este mesmo mistério explique todo o fascínio que circunda até hoje a mulher de sombrancelhas angulosas, olhos lânguidos, lábios carnudos e corpo ampulheta, que soube misturar com dosagem magicamente perfeita a lolita e a mulher fatal. Rest in peace, Norma Jean? Ninguém pode dizer isso. Norma nunca descansou, desde que se tornou Marilyn. Como já diz a canção de Elton John: “Your candle burned out long before, the legend never did” (sua vela se apagou muito tempo atrás, mas jamais a sua lenda). Ao que parece, nem se apagará.
E por que falar em Marilyn, para além do 50º aniversário de sua morte? Porque Marilyn também é história. História do cinema. Porque dias atrás lemos nos jornais de Catanduva a triste notícia de que os cinemas Bandeirantes e República, parte da história de Catanduva, fecharão, por falta de recursos. Falta de interesse do público e das autoridades. Os cinemas são cultura e desenvolvimento para os catanduvenses; para o comércio principalmente, pois a força da cultura impulsiona os negócios. Quantos não poderiam narrar momentos em que foram ao cinema e, logo após, compraram algo numa loja ou um sorvete na sorveteria da esquina da rua Alagoas? Onde estão os nossos representantes públicos e empresários, que deveriam tentar impedir que este cinema vire parte do passado? Deixaremos também esta 'vela' se apagar? Até porque, a tirar pelo descaso geral, nem a lenda ficará. Só o vil metal salvará. Chora, Norma, chora. No fim das contas, diamonds are a girl's best friend. Não os homens, que nos abandonam, não a cultura, que é relegada. Diamantes – Marilyn cantaria – os diamantes são os melhores amigos de uma garota. Ou de um sistema inteiro.