“Aquele que
não se fizer como uma criança não herdará o Reino dos Céus”. As palavras de
Jesus ecoam em minha mente, como num som de trovão com direito a efeitos de
iluminação entre abertura de nuvens.
Olho para a TV e o que vejo? O desenho
do Pokemón. Ao meu lado, e disputando seu lugar no sofá como uma visita
inconveniente, mais sete adultos. Notadamente aborrecidos, tentam iniciar um
diálogo qualquer. A crise mundial, o mensalão, o assassinato da juíza, o final
da novela, o clima. Logo desistem, porque ninguém se escuta. Ao centro, jogado
no tapete da sala como um sultão de bermudas, o menino de apenas seis anos faz
do controle remoto o seu cetro.
- Fala mais baixo todo mundo aê!
Eu tô assistindo! Humph! – e infla as bochechas como um trompetista pronto a
soprar a nota final – Que saco, viu!
Suspiro. Será que devo ser
aquilo para herdar o Reino dos Céus? Deixe ver... A partir de amanhã não respeito
fila nenhuma, sento no assento de deficiente e levo meus amigos vegetarianos
pra almoçarem numa churrascaria.
Peço desculpas aos parentes.
Digo que estou ocupadíssima, cheia de trabalho pra entregar e que não posso
ficar mais e... Não sou ouvida. O menino
sai em disparada e tira o pai do notebook.
- Papai precisa mandar um e-mail. É importante.
- Saiiiiiiiiiiiiiiiii. Quero jogar meu joguinho, depois você usa.
O pai dá um sorriso amarelo, já visivelmente destronado e faz o gênero “gerei
um mini gênio”.
- Essas crianças de hoje em dia são muito espertas. Ele sabe até a
minha senha! Entende tudo de computador... às vezes até me ajuda! Por isso tem
que incentivar, né. Estou em falta. Era pra ter já comprado seu notebook, mas me
enrolei com as prestações do celular de R$ 600 que ele pediu.
- Olha só... – faço cara de espanto, como se o filho deles fosse o
único a saber ligar um computador e me lembro de que eu nunca fui promovida a
Einstein mesmo tocando Mozart, Chopin e Beethoven com 10 anos de idade. Naquele
tempo a gente era apenas... alguém que estuda e como consequência aprende.
Normalíssimo. “E se não aprender, se não virar nada, te tiro do curso, que é
caro, por isso decida se é isso mesmo que você quer”.
Chegava o dia do recital. Palmas e parabéns, mas também considerações: “na
primeira música, você tropeçou, precisa estudar mais. A segunda você tocou
muito bem”. Enfim, naquele tempo dava pra acreditar em elogio. Nossos pais não
ficavam se acotovelando e pisando no pé dos outros pra filmar o filho
interpretar o dificílimo personagem “Sol”, no premiadíssimo espetáculo “Primavera”,
que consiste em um no meio do palco com uma cartolina amarela em volta da cara,
mais cinco em volta com uma cartolina em forma de flor em volta da cara. E todas
as crianças no palco com cara de terror olhando o desespero dos pais
atravessando a frente de quem fosse em busca do melhor ângulo. Porque “tem que estimular
a auto-estima das crianças”. Quase ninguém se preocupa com as distorções de
realidade e as frustrações futuras do seu ‘reizinho’, quando ele perceber que o
namorado, o chefe, o guarda de trânsito ou a polícia não são o pai e a mãe dele
e não acham “lindo” tudo que ele faz.
Nossos pais também não iam brigar com a professora porque o personagem
principal não foi do filho deles. Se a gente reclamasse, corria o risco de
ouvir: “A professora é que sabe. Estude mais e mostre mais empenho. Quem sabe
da próxima vez você é o escolhido”. E crescíamos sem traumas. Sem crise.
Voltando ao átrio do mini Faraó. Quero ir embora. Voltar ao mundo dos
adultos. Os pais do pequeno príncipe sem raposa pra puxar pelo rabo insistem
pra eu ficar mais um pouquinho, perguntam que tanto trabalho é esse, o que eu
ando fazendo, além de não colaborar para agravar o inchaço populacional do
Planeta Terra.
- Então... quando teremos um amiguinho pro Rafinha brincar?
- É... tentador, mas no mundo de hoje...
Mal abri minha boca pra responder, de súbito meus interlocutores
parecem mais interessados no hemisfério sul. Explico: somos interrompidos por
um puxão na barra da blusa, que vem lá de baixo, do nosso fofo pigmeu.
- Mãe, quero comer biscoito!
- Mas filho, você vai jantar
daqui a pouco. O biscoito vai estragar sua janta.
- EU QUERO BISCOITO, EU QUERO
BISCOITO, EU QUERO BISCOITO!
Lá fico eu de novo com cara de
tacho, feito uma coluna do templo, esperando o desfecho dessa emergência
inadiável, reivindicação importantíssima para a humanidade: a aprovação do
projeto do biscoito. Um dos temas da próxima conferência do G20. “Mudanças nas
relações comerciais com os países em desenvolvimento e... os biscoitos do
Rafinha”.
- Pera só um pouquinho... – diz
a mãe – para mim, que fique claro – enquanto vai até a cozinha, fingindo que
manda alguma coisa – Só dois, hein?
O menino arranca o pacote de
biscoitos da mão da mãe, como se não comesse há 40 dias e 40 noites no deserto
de Gobi. Não fosse as bochechas coradas, alguém poderia chamar o Conselho
Tutelar.
Finalmente, em meio às
divergências de posse do biscoito, obtenho lapso de atenção suficiente para me
despedir apropriadamente e tomo o rumo de casa. A primeira impressão que tenho
ao cruzar o portão é o silêncio, apesar do ônibus que passa buzinando, do carro
com som no último tocando funk, da madeireira em frente e da broca da
Prefeitura quebrando o asfalto. Não ouço mais a voz ardida do pequeno ditador,
nem a trilha sonora dos Cavaleiros do Zodíaco. A paz reina.
No caminho de volta para casa, algumas
frases dos meus pais dos meus tempos de criança me vêm à mente:
- Já são nove horas. Todo mundo
pra cama.
- No Natal ou no Dia das
Crianças eu te dou, mas vamos ver nossas condições... – e nada de presente a
cada vez que se vai ao supermercado.
- Quando chegar à casa do fulano,
comporte-se e não mexa em nada.
- Silêncio agora que a mamãe tá
conversando.
- Não aponta pra ninguém na rua,
que é feio.
- Pare de encarar as pessoas na
rua, que é falta de educação.
- Oferece pro moço.
- Divide com o coleguinha, senão
não te dou mais.
- Agradece o tio.
Confesso que entre minhas
antigas memórias e os mais recentes acontecimentos tenho dificuldades para
entender como pode ser das crianças o Reino dos Céus. Até porque nem nos anos
60 ou 70 éramos santos. Nem na corte de Versalhes, nem na varanda dos amish
menonitas, nem na tribo dos tupinambás. Nunca vi crianças como anjos. Para mim
sempre foram apenas seres humanos em miniatura. Como anões, só que com a cabeça
menor.
Quando lecionava, cheguei a ver
crianças que colocavam o pé na frente do coleguinha só pelo prazer de vê-lo se
esborrachar. Ao serem confrontados, mantinham a feição cândida dos anjinhos
barrocos, mesmo com todos os dedinhos das demais crianças da classe apontando
pra eles enquanto repetiam em coro: “Foi ele, sim, tia, foi! Todo mundo viu! A
gente não aguenta mais! Ele bate em todo mundo!”. Praticamente a população de
um país do Oriente Médio ou Norte da África clamando Justiça à comunidade
internacional. “Tirem esse déspota daqui!”.
Havia também crianças de cinco
anos que socavam a cabeça dos mais indefesos contra a parede. Crianças
saudáveis, de famílias distintas, bem amadas e frequentadoras das mais
renomadas instituições educacionais. Outras, como potros selvagens, mordiam crianças,
progenitores e diretores. Em suma, tudo que se movesse. Outros, mais incautos,
e menos dados à selvageria, apenas se alegravam soberbamente com a punição do semelhante.
Punição esta por vezes acelerada pela denúncia escancarada: “Foi ele, eu vi!
Manda pra fora! Conta tudo pra mãe dele! Não deixa ir ao parque! Dá zero pra
ele! Crucifica! Crucifica! Crucifica!”. Oh, Jesus, que será do teu Reino?
Hitler já foi criança. Bin Laden
não nasceu com aquela barba. Assassinos, traficantes, ladrões, mentirosos
contumazes... todos já foram crianças. E mesmo os que hoje assinam seus cheques
como cidadãos respeitáveis e até os que se destacam na cidade como pilares da
moral e dos bons costumes ou como exemplos de vida no voluntariado, quando
crianças, atormentavam a vida de coleguinhas mais feios, mais gordos, mais
magros, mais bobos. Como pode ser das crianças o Reino dos Céus?
Crianças não são anjos, nem
demônios. São mais puras e inocentes porque não viveram o suficiente para
fazerem suas escolhas. Crianças são uma tela em branco, testando a tudo e a
todos, perguntando tudo pra todo mundo e se achando o centro do universo. Devemos
então ser egocêntricos para herdar o Reino dos Céus?
Já começava a me incomodar com a minha confusão, mas de repente, como
uma peteca na cabeça, me vem a resposta. Dependência! Crianças são totalmente
dependentes. Acreditam nos pais e deles esperam tudo. Simbolizam a fé que Deus
espera de nós e não a auto-suficiência. Dependência como a de uma criança, que
caminha tranquila de mãos dadas com o pai, ainda que esteja caminhando pelo
corredor da morte, porque ao lado de seu ‘herói’ nada mal pode lhe acontecer.
Quem assistiu ao filme “A vida é bela” sabe bem o que isso significa.
As crianças dependem dos mais
velhos para receber tudo de que necessitam para se tornarem adultos
responsáveis. Carinho, amor, alimentação, educação. Não só a que se aprende na
escola. Elas dependem de nós para que não se transformem em pequenos tiranos. Para
que não sejam, no futuro, imperadores de um reino em ruínas. Para que sejam,
mesmo adultos, as crianças que Jesus espera que sejamos. Humildes dependentes do
Altíssimo. Inquilinos eternos do Reino dos Céus.