segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Cartão

Ia se preparando para trincar seu sanduíche de rúcula com ricota, enquanto lia o jornal, quando o telefone tocou. Era como a sirene do internato onde havia passado a infância e que sempre interrompia suas ralas refeições.
Era lerdo para comer desde os tempos em que só dava pra ter mortadela no recheio. Sempre achou que as refeições deveriam ser sorvidas languidamente, como os aristocratas e suas uvas.
Mas aquele telefone tocando, justo naquela hora, era inoportuno como uma jaca servida num brunch.
Após um dia cheio no trabalho, estava faminto e com saudades de sua solidão, mas foi atender, movido pelo mesmo condicionamento que estufa de sementes as bochechas dos hamsters.
- Boa tarde, é um imenso prazer falar com o senhor.
Tinha o tom falsamente insuportável dos apresentadores de programa de auditório. Tentava ser íntima e estupidamente simpática como nem sua tia Cotinha que o adorava e morava em Santa Gertrudes do Passa Oito costumava ser quando lhe telefonava.
Por frações de segundos pensou: “Quem essa fulana pensa que sou? O Brad Pitt?”. Não. Frente a pessoas famosas, as reações são inesperadas. Alguns perdem a fala, gaguejam, falam coisas idiotas, depois dão um sorrisinho amarelo e pedem desculpas pela idiotice. Aquele tom não era assim.
Era um tom de “eu sei o quanto você é idiota, e por isso estou te ligando enquanto você tenta comer o seu sanduíche de ricota”.
- Boa tarde, senho...
- Noite.
- Perdão?
- É boa noite. Você está me ligando às 19h58, praticamente oito da noite. Pelo menos é assim que dizemos no Brasil, a não ser que a senhora esteja na Ilha de Páscoa.
- Não estamos oferecendo nenhuma promoção de Páscoa, senhor. Trata-se da incrível promoção de Carnaval, da qual o senhor foi o estupendamente felizardo em poder participar, senhor Amado... Amado Cordeiro, não é isso?
- É Rocha. Amado Rocha.
Odiava seu último nome. Sempre lhe conferia uma imagem resignada. Por isso, quando lhe perguntavam, dava o nome do meio.
- Amado Rocha Cordeiro, entendo...
- Sim, é isso mesmo, podemos resolver isso logo, por favor? Eu quero voltar pro meu sanduíche e pro meu jornal.
- Hoje é o seu dia de sorte, senhor Amado Cordeiro.
- Rocha!
- Pois é isso. Senhor Amado Rocha Cordeiro. Eu só estou tentando apresentar ao senhor as nossas incríveis promoções do nosso Banco. O senhor não precisa ficar nervoso.
- Eu não estou nervoso, só estou tentando terminar o meu jantar.
- Eu compreendo, mas com o cartão de crédito que disponibilizaremos para o senhor, o senhor poderá comprar muito mais que um belo jantar, poderá pagar em até 90 dias, e depois de sete anos terá direito a um desconto de 5% no carro que o senhor escolher, desde que seja da marca Enka La Kradu, End Vidado ou De Volvo Tudo, ops Turbo! Turbo! Eu quis dizer Turbo! Desculpe a confusão, senhor Cordeiro.
- É Rocha!
- Não precisa se irritar, senhor Rocha. O senhor devia ficar feliz! Já que o senhor mora no bairro... Qual é o nome do bairro do senhor?
- Por quê?
- Senhor, eu preciso do nome do seu bairro para que isso conste no meu cadastro, o senhor compreende? Não precisa se irritar. Nós gostamos do senhor.
- Eu não estou irritado! E vocês gostam de mim por quê?
- O senhor pensa que não deviam gostar do senhor?
- Não...
- Não?
- Não foi isso que eu quis dizer. Está bem. Vamos logo com isso. Eu moro no bairro Presidente Ferdinando.
- Perdão?
- Presidente Ferdinando.
- Eu não entendo, senhor.
- Eu moro no bairro Presidente Ferdinando.
- Mas nunca existiu nenhum presidente com esse nome.
- Oras, mas o que a senhora quer que eu faça? Foi o nome que deram a este bairro e eu moro aqui. Quer que eu invente outro? Que me mude? Que vá às ruas protestar? Que pinte a cara contra o Presidente Ferdinando que nunca existiu?
- Eu disse isso, senhor?
- Não.
- Eu apenas perguntei o nome do seu bairro e colaborei com uma informação histórica. Não entendo a razão de tanta irritação.
- Mas eu não estou irritado.
- O senhor tem certeza?
- TENHO.
- Está vendo? O senhor já se irritou.
- Está bem. Desculpe. Eu não estou irritado. Por favor, acredite.
- Ok, então eu espero que possamos terminar esta conversa civilizadamente, já que o senhor é muito importante para nós. Qual o nome da rua e número de sua residência?
- Pra quê?
- Pra que enviemos o cartão de crédito para o senhor.
- Mas eu não pedi nenhum cartão de crédito.
- Sim, claro que o senhor não pediu. Nós é que estamos dando, porque o senhor foi o incrível selecionado para a nossa promoção de Carnaval. Seu endereço, por favor?
- Eu não quero te dar meu endereço.
- O senhor está dificultando as coisas. Como é que eu posso mandar o cartão se o senhor não me der o endereço?
- Pois não mande.
- De maneira alguma. O senhor é muito querido para nós. Procuraremos na lista. Vejamos aqui... Cordeiro, Cordeiro...
- É Rocha!
- Senhor, seu último nome é Cordeiro. Eu não posso achar seu endereço se eu procurar por Rocha.
- Pois não mande! Eu não quero cartão de crédito algum. E eu não quero que o meu bairro mude de nome.
- Entretanto o senhor quer mudar o seu nome...
- Eu não quero mudar. Apenas prefiro que me chamem de Rocha. Eu não gosto de Cordeiro.
- O senhor é anti-semita?
- O quê?
- Anti-semita. Tem algum preconceito contra os judeus?
- Mas o que isso tem a ver?
- Eles comem cordeiro.
- Sim, comem, mas...
- Gostaria de informá-lo de que esta conversa está sendo gravada e que este conteúdo discriminatório será relatado às autoridades.
- Pelo amor de Deus, eu não sou nazista.
- Mas o senhor não quer o cartão de crédito que eu estou oferecendo e os principais acionistas deste Banco são judeus.
- Eu não sabia.
- O senhor não estava lendo o jornal?
- Sim.
- O senhor lê o caderno econômico?
- Sim.
- Assim fica difícil acreditar que o senhor não sabia...
- Desculpe, talvez não leia assim com tanta freqüência. É que eu ando meio confuso. Às vezes quando digo sim, quero dizer não. E quando não, é sim.
- Entendi perfeitamente. Isso quer dizer então que podemos enviar o cartão.
- Eu não disse isso.
- Mas o senhor acabou de dizer que quando diz uma coisa quer dizer outra. Assim fica difícil ajudar, senhor Rocha.
- É CORDEIRO!
- Como é?
- Ah! Você acertou! Sim, é Rocha!
- Está vendo? O senhor não sabe o que diz. Estamos encaminhando para o senhor o nosso cartão de crédito, combinado, senhor Rocha? Senhor Rocha? Senhor Rocha, o senhor está me escutando?
Foi achado dias depois, dependurado com os pés ao ar. No pescoço, o fio do telefone. Na escrivaninha, um bilhete: “Morro enforcado, tendo jamais me enforcado no cartão de crédito”. Na caixinha do correio, o cartão de crédito.

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