quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Segundos

Quer saber a diferença que fazem alguns míseros segundos na sua vida?
Meu marido é armênio. Como todo armênio é sensível à história do genocídio e principalmente ao fato de o mesmo ser negado até hoje pelo governo turco. Mas, prático e calado, raramente fala desses assuntos. Levou, por isso mesmo, anos, para que esse detalhe de sua história fosse a mim relatada.
Com 30 anos, ele obviamente não viveu aquela época. O genocídio armênio aconteceu entre 1915 e 1918. Mas sua vida e a minha foram afetadas. Mesmo sendo uma cidadã brasileira, sem qualquer ascendência oriental, meu destino teria sido totalmente diverso.
Ocorre que, com apenas seis anos de idade, o bisavô do meu marido escapou de ser morto, num dos assassinatos em massa empreendidos pelos soldados turcos.
Presos e mortos primeiramente os pais de família, mulheres e crianças eram transportadas ao deserto da Síria, país que na época também estava sob o jugo dos turcos. No caminho, não havia comida e qualquer aldeão que lhes alimentasse também poderia ser morto. No comando, eram escaladas gangues de curdos. Alertados pelo governo da Síria de que eles não sobreviveriam a uma jornada tão longa até o deserto sírio, sem alimento, os soldados passavam, então, a eliminar os armênios, entre eles mulheres e crianças.
Um a um, as gargantas de todos eram cortadas. Por vezes, crianças sobreviviam, órfãs e com as costas machucadas. Quando os soldados esfaqueavam as mães, estas protegiam os pequenos. A lança varava o corpo da mãe, atingindo parte do corpo da criança, que ficava encolhidinha entre o corpo da progenitora. Os soldados pensavam que estavam todos mortos e, assim, sobreviviam alguns.
No caso do bisavô do meu marido, quando ia ter a garganta cortada, eis que um soldado grita. Ordena que já basta. Uma ordem proveniente do governo turco havia chegado. Cerca de 1,5 milhão de armênios já havia sido eliminada e estes, na visão dos turcos, já não representavam nenhuma “ameaça”.
Órfão e entre centenas de corpos, um garoto de apenas seis anos corre em busca de algo simples. Não casa, amiguinhos, brinquedos, nem pai, nem mãe. Apenas a possibilidade de manter-se vivo. O instinto de sobrevivência falando mais alto, sem tempo nem parar chorar.
Difícil imaginar que destino poderia ter se descortinado a uma criança nessas condições. Poderia crescer e tornar-se um psicopata, como poderia ter crescido e se tornado um cidadão de bem, como se tornou, gerando filhos, netos e bisnetos, entre eles das pessoas mais doces e amorosas que já conheci.
Vejo o poder de segundos libertadores. Alguns segundos mais e sua garganta teria sido cortada. Ele não poderia ter tido um bisneto chamado Ares Karasu, o atual amor da minha vida. O homem que me salvou de uma grande dor, de uma grande perda. A perda do meu marido falecido em 2006, vítima de um acidente automobilístico, da falta de responsabilidade de um motorista inconsequente.
Ares não poderia ter sido um marido melhor para uma esposa viúva, tão sangrada pela vida.
Compreensivo, nobre de espírito, compassivo, é certamente o homem que meu primeiro marido, que tanto me amou, adoraria que tivesse tomado seu lugar para cuidar deste velho flagelado de guerra: meu coração.
Acidentes, assassinatos, omissão. Somos todos, de uma forma ou de outra, vítimas de segundos fatais ou de segundos salvadores.
Então percebemos também que armênios, turcos ou brasileiros, somos, antes de tudo, seres humanos, tão diferentes em nossas culturas, mas tão iguais em nossos anseios, sentimentos, feridas e carências.
Podemos concluir o quanto a discriminação e a incompreensão não têm qualquer sentido e os pecados do passado, para serem perdoados, precisam, primeiramente, ser admitidos. Afinal, ele, o senhor tempo, continua rugindo, senhor absoluto de todos os destinos, e não sabemos quanto tempo ainda temos para fazer a coisa certa, quantas gargantas simbólicas ou literais ainda serão cortadas por culpa da nossa omissão, quantos pessoas maravilhosas iremos impedir de vir ao mundo porque não investimos adequadamente nos seres humanos que estão hoje à nossa volta.
Finalmente, quantos destinos serão alterados, quando tudo poderia ser infinitamente melhor? As respostas saberemos em breve, porque tudo é uma questão de tempo.
No momento, gosto de pensar que aquele menino correndo, rumo ao desconhecido, não salvou apenas a si mesmo. Salvaria, indiretamente, e 90 anos depois, a minha vida.

2 comentários:

  1. Minha querida "Bunita"...
    De você não poderia esperar outra coisa a não ser "a alma expressa em simples palavras"...
    Te admiro muito, desde o dia em que te conhecí, você é uma pessoa muito especial e se me permitir, te considero como uma irmã que não tive....
    Parabéns pelo texto, é a pura realidade não só da vida dessas pessoas retratadas na história, mas também estamos incluídos nela de alguma forma....
    Beijos do Tio Bonfa.....

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    1. Nossa, Bonfim, mt obrigada. Sabia q vc me considerava uma amiga, mas confesso q fikei emocionada pela demonstração de carinho, q eu sei q é sincero. Convivemos pouco, mas o suficiente sentir q vc é sangue bom. Minha mãe tbem tem a maior consideração por vc e sempre q te ve por aí sempre fala: "Ah, Adriana, hj sabe kem eu vi na rua? O "Bonitcho"! kkkkk

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