quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Pedra no sapato

“Aroldo Pedrosa é uma rocha”. Diziam isso dele, mas o que na verdade gostariam de dizer é que ele era duro como uma pedra. “Que personalidade ele tem!” Pobre é cabeça dura, mas rico “tem personalidade”. “Pessoa de opinião o Pedrosa!”.
Aroldo era difícil. E digo difícil não como atributo desejável nos tempos das moçoilas ternurinhas. Sua esposa por vezes desabafava: “Aroldo, eu te amo, mas você é di-fí-cil”. E dizia isso assim, separando as letrinhas com pausas dramáticas.
Uma pessoa que não pode ver um quadro meio torto é tida como portadora do transtorno obsessivo compulsivo, o famoso “toc”. Mas Aroldo não tinha só um “toc”, ele era um “agarramento” inteiro de manias e ideias fixas, coberto por uma casca de concreto feito com o mais indissolúvel dos argumentos para qualquer assunto de todas as especialidades em todas as hipóteses possíveis.
Para Aroldo havia sempre duas opiniões: a errada e a dele. Andava empinadinho, empoladinho, estufadinho, como um mufim de aniversário.
Quando verbalmente encurralado em uma das acaloradas discussões semânticas em que se metia, erguia o tom da voz e punha o dedo em riste na cara do interlocutor, com ares que transformariam o general Geisel na Taylor Swift. Com o tom solene, recorria a fantasias, exemplos exagerados, citações que provavelmente não seriam conferidas àquela hora da noite numa enciclopédia. E se a Wikipédia negasse, culpa dessa internet e sua tribo de loucos! A maioria das vezes funcionava. O coitado do ouvinte recuava, fingia rendição, por vezes até se desculpava. Se o caldo entornasse de vez, Pedrosa não respondia por si. Ofendia-se, torcia as palavras do “adversário”. E houve até caso em que a conversa terminou num definitivo: “Cale a sua boca!”. Afasta de mim esse cálice.
“O mundo muda, Pedrosa!”, aconselhava-lhe a esposa. Mas qual. Para Pedrosa, ‘tempo bom’ eram “aqueles velhos tempos”. Nos dias de hoje não havia nada de bom. E quanto ao futuro, Deus tenha piedade.
O tormento era quando se pegava gostando de algo sobre o qual já havia oficializado detestar. Seus alvos de crítica eram praticamente registrados em cartório com firma reconhecida. Aí se surpreendia batendo os pezinhos ao som daquela música e contendo o sorriso de canto de boca ao assistir aquele comediante. Mas contorcia-se em suas convicções. “Um homem decente é feito de constância”, acreditava.
E a comida? Um dia a esposa, pra dar uma variada no cardápio e cheia de ‘más intenções’, o levou a um restaurante de comida indiana. Já na porta do restaurante, Pedrosa arregalou os olhos: “Mas o que é isso? Você quer que eu me converta? Você sabe muito bem que eu sou crente kardecista!”.
- Mas, Pedrosa... é só a comida...
- É assim que eles começam, Ofélia, vão te enfiando pimenta goela abaixo e quando o sujeito se dá conta já está matando galinha preta.
E de confusão em confusão, preconceito em preconceito, teimosia em teimosia, Pedrosa se enrijeceu. Endureceu-se até perder a ternura pra sempre. Um dia Ofélia o chamou para o arroz com feijão de todos os dias, mas Pedrosa já não respondeu. Na cadeira art decoque herdara do avô, calado estava, calado ficou. Ofélia nem chamou de novo, pois Pedrosa não era de mudar comportamento. Foi até a sala onde estava o marido e o cutucou no ombro esquerdo – o direito ele não gostava.  Foi então que Pedrosa se desfez em mil pedaços, como uma louça chinesa espatifada.
Pedrosa não entendia que é próprio dos sábios mudar de opinião.
Pedrosa, diferente de Pedro, que negou três vezes pra depois chorar arrependimento e mudar de opinião, quis ser como Judas, que ao se negar a encarar as consequências de suas ideias erradas exterminou-se da vida, amaldiçoou-se pro mundo.
Pedrosa não sabia que o importante é ser autêntico e não ser sempre o mesmo. E que o bonito da vida é que as coisas se transformam. E que a mãe de todas as misérias é ter tudo e saber tudo. E não pensar em mais nada que se queira.
Pedrosa não descobriu porque é das crianças o reino dos céus. Que um alienígena na frente de um adulto provoca desmaios, mas na frente de uma criança é tão atrativo quando um cubo colorido. Que o bebê é o mais sábio de todos os filósofos, porque pra ele tudo é perfeitamente possível. Porque a criança é o ser em expansão que os adultos engessados deixaram de ser, como o Pedrosa, feito de massa sólida.
Ofélia varreu os cacos, vendeu a cadeira, comprou uma nova, art nouveau, e se mudou pro litoral do Maranhão, onde as marés, num único dia, transformavam a paisagem por mais de uma vez, levando pra longe todo ranço de mesmice.

Um comentário:

  1. Seus artigos são excelentes. Sua criatividade, Inteligência e humor refinado apimentam o q vc escreve deixando seus fãs ansiosos pelo próximo.
    Um abraço do seu fã n 1

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