quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Espelhos

“Olha como a gente é bonito”. E grudamos nossas bochechas como dois filhotes de hamsters. E em vez de focar as bochechas, um caricaturista exageraria os nossos sorrisos. Minha mão na sua bochecha esquerda. Mão dele na minha bochecha direita.
Ali ficávamos segundos de deleite em frente ao espelho, fazendo coisa nenhuma importante, a coisa mais deliciosa que se tem pra fazer na vida. E o espelho, nossa única testemunha, era nosso amigo.
E me lembro agora que índios não gostam de espelhos. Eles acreditam que o espelho aprisiona a alma. Por isso os vampiros não teriam suas imagens refletidas no espelho: porque eles não têm alma.  E aí deduzo que os índios já conheciam os vampiros antes de assistir o filme Crepúsculo.
Quem gosta muito de se olhar no espelho é tido como uma pessoa vaidosa, que cuida da beleza. E não é de se admirar que o espelho surgiu numa das cidades mais belas do mundo, Veneza, no século 16. Nesta época também os portugueses partiam em busca de novos horizontes, mar adentro. Desembocaram no Brasil, onde encontraram os índios e trocaram uma boa acolhida por... espelhos!
E não acho que eles foram subestimados, que os indígenas baixaram a guarda na própria terra em troca de uns reles espelhinhos. É fácil dizer isso hoje, quando qualquer celular tira fotografias. Espelhos eram caros. Caríssimos. Tanto que daí teria vindo a lenda de que quebrar um espelho dá azar. Perder dinheiro é um azar danado.
Mas espelhos não são meros objetos a serviço da vaidade humana. Eu diria que espelhos são tão necessários quanto uma sessão de análise. Todo mundo, pelo menos uma vez por semana, deveria encarar um espelho. Não pra espremer espinha, medir celulite, ver se a bunda caiu ou se a maquiagem borrou. Encarar um espelho para um check-up espiritual. Você só vai ver um rosto. Tem gente que diz que vê aura, anjo e duende. Eu digo que ao olhar pro espelho, de alma lavada, você provavelmente não verá nada brilhando à sua volta. Tampouco sombras ou anjinhos barrocos de bundinhas rechonchudas.
Encare seus olhos, estas pequenas janelas da alma. Espie por estas frestas de eternidade.
Mas cuidado. Um espelho pode ser fatal se a sua alma perder a sintonia. Que o diga Narciso, que se apaixonou por si mesmo. Morreu de inanição, tentando acariciar a própria imagem. Não caia nessa emboscada. Não seja tão piedoso consigo mesmo. Olhe no mais profundo dos seus olhos e tente ver você mesmo, como realmente é. E sem qualquer auto-complacência, avalie suas atitudes. Pergunte a si mesmo quem você é. Sem medo. Espelhos não podem te fazer mal. Eles só refletem, como a lua.
Espelhos, na realidade, não são nada. Espelhos são uns grandes sacanas. Ponho minhas mãos por sobre um deles e me aproximo de forma tal, que minha respiração embaça o vidro, mas só o que vejo e sinto é uma superfície dura, gélida e plana. Por vezes você também terá a mesma impressão. A de que espelhos são uns ordinários. Onde terão escondido preciosas imagens que lhe roubaram? Espelhos também são prisões. Guardam segredos que ficam ali, aprisionados.
Espelhos nos fazem querer ter poderes sobrenaturais. Mas não dos mais previsíveis, como voar ou ficar invisível. Eu, por exemplo, gostaria de aprisionar espelhos, cristalizar suas imagens, tornando palpáveis, a um alcance das mãos, e ao meu bel prazer, as que ficaram no passado e voaram pra longe. Se eu escravizasse um espelho, teria coisa melhor pra fazer do que perguntar se existe alguém mais bonita do que eu.
Lembro-me novamente de nós dois em frente ao espelho. “Olha como a gente é bonito”. Nossa constatação em frente ao espelho não tinha tensão. Não estávamos preocupados se havia alguém mais bonito ou mais feio neste mundo tão cheio de espelhos. Era uma afirmação, uma delícia de momento ter certeza de não haver nada mais lindo que a gente junto. Nosso creme milagroso anti radicais livres, nosso Ivo Pitanguy, nossa mesoterapia e qualquer intervenção estética de que se tenha notícia era advinda de um único advérbio: “juntos”.
Fiquei um longo tempo sem conseguir me olhar no espelho, depois que a minha outra parte refletida foi embora pra sempre. Talvez eu sequer soubesse por onde andava minha alma. Talvez aprisionada naquele espelho. Talvez ferida demais pra ser contemplada.
Hoje, já me olho no espelho, mas o reflexo que vejo não é o mesmo. E não saberia dizer exatamente tudo o que mudou. Os espelhos, estes sim, o sabem muito bem.

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